Icleia Borsa Cattani
Porto Alegre, 1987

Poderíamos dizer, parafraseando Gertrude Stein: uma imagem é uma ima­gem é uma imagem… Uma imagem é, sempre um conjunto organizado de signos ocupando uma superficie plana (ou, em seu sentido mais amplo, um espaço tridi­mensional), que pode ser apreendido seja como uma estrutura analógica, seja como estrutura arbitrária. Ela pode figurar ou reprodozir o mundo das aparências, ou ser uma pura organização de significantes. De qualquer forma, ela possui vários níveis de significação e opera sempre num espa­ço histórico, marcado, portanto, por uma cultura, uma estética, uma ideologia. Mu­dam, inclusive, as formas de produção da imagem. No século XX, estas caracterizam-se, entre outros aspectos, pelos jogos que o produtor instaura com seus formantes plásticos. A descoberta de sua especificidade, em detrimento de qualquer “mensagem”, foi elemento fun­damental para a produção contemporâ­nea. “A arte não reproduz o visível, ela torna visível.” (Paul Klee)

No trabalho de Vera Chaves Barcellos existe um jogo sistemático com as possibi­lidades da imagem. A trajetória de sua produção é marcada por incansáveis pes­quisas nesse sentido desde 1966-1967. As xilogravuras dessa época caracterizam-se já pelo jogo formal, “simbolos de contras­te”, como o definiu a artista, entre “mun­do mecânico (ou construido) e mundo orgânico (ou natureza)”.(¹) Na mesma época, surgiram obras como o Tríptico para combinações , gravuras em acrílico que possibilitavam, como o nome indica, diferentes combinatórias que modificavam a forma final. Contrariando a regra matemática, nesse caso específico a ordem dos fatores alterava fundamentalmente o produto… Tal trabalho ocorreu num momento histórico no qual muitos artistas procuravam a participação direta do espectador em suas obras, em que o estudo de Umberto Eco sobre a “Obra aberta” respondia diretamente às inquietações nesse sentido. Seguindo a mesma linha de proposta, em 1970 Vera elaborou serigrafias cujos módulos possibilitavam inúmeras variações (série dos Permutáveis/Combináveis ). É importante salientar que os títulos são sempre, em sua obra, extremamente evocativos do processo que pesquisa no momento. Nos anos 70, a fotografia foi introduzida em seu trabalho, ligada muitas vezes a outras técnicas, principalmente a serigrafia. Na maioria dos casos, fotografava pessoalmente o que a interessava. Tal prática aguçou suas reflexões sobre o processo da percepção e sobre a apreensão do real, pelo olhar humano e pelos aparelhos, que nos permitem perceber além do real: ampliações, cortes, reduções… Abriramse, assim, novas possibilidades de elaboração de imagens e de reflexão sobre as mesmas. \A série dos Testartes , mostrados na Bienal de Veneza de 1976, foi uma culminância deste processo, implicando mais uma vez na participação ativa do espectador. Naquele momento, entretanto, a participação não ocorreu através da manipulação de elementos formais, mas através de perguntas que incitavam à projeção do imaginário de cada um sobre a imagem exposta. As fotografias de Epidermic Scapes , de 1977-1982, propunham fragmentos do corpo humano como paisagens, como o título permite supor; tratava-se de uma seleção de elementos que permitiam uma leitura ambigua: o que é intrinsecamente nosso (corpo) visto como exterior a nós (paisagem). “Inquietante estranheza” a que provoca essa viagem por fora (e por dentro) de nós mesmos… Na série de fotografias intitulada Atenção, Processo Seletivo do Perceber , a artista jogava novamente com uma fragmentação do corpo-só que não se tratava mais do corpo humano, mas do corpo da imagem. A fragmentação, privilegiando detalhes, conduzia a seu redimensionamento e à descoberta de seus meandros, criando imagens-labirinto. Nesse trabalho ocorreu algo que facilita a compreensão do seu processo real a utilização da fotografia como ponto de partida, e do xerox como meio complementar que permite, com maior facilidade que a foto, ampliar detalhes. Cada pedaço da imagem original é transformado numa outra imagem, autônoma. Em Quebra-cabeça (1983/1984), o processo de desmembramento da imagem fotográfica era similar ao trabalho precedente, mas as cópias-xerox dos fragmentos foram substituidas pelo desenho, exigindo da artista um novo dimensionamento do processo da percepção. Dentro da lógica da trajetória da produção de Vera Chaves Barcellos, não é de espantar a multiplicidade de técnicas, pois elas sempre serviram, basicamente, como suporte para a idéia. O desenho, a gravura e, principalmente, a fotografia trazem implicitas as possibilidades infinitas de multiplicação da imagem e de jogos combinatórios. A ressensibilização do olhar, através do Processo Seletivo do Perceber , sempre foi para a artista objetivo primordial.

No trabalho atual, o jogo se intensifica e se enriquece em sutilezas. Todas as possibilidades são exploradas no desdobramento da imagem e de seus detalhes. A imagem de partida é constituida de elementos do cotidiano. Os cortes e a ampliação de suas partes criam contextos novos, nos quais perdem-se todos os referenciais iniciais, restam, apenas, sugestões de objetos ou de formas. O mesmo processo de trabalho das etapas anteriores faz com que se chegue, no caso atual, a um conjunto ambíguo, no qual alternam-se imagens reconhecíveis e outras, irreconhecíveis (que seriam comumente denominadas “abstratas”). Conjugam-se aqui as infinitas intervenções possíveis. Por um lado, os mais sofisticados meios de reprodução: fotografia, fotolitagem, xerografia em branco e preto e a cores, sobre papel comum e papel fotográfico. Por outro lado, o antigo fazer artesanal, com pintura a guache e acrílica. Entre os dois extremos, técnicas intermediárias, como a serigrafia. A imagem fotográfica de partida é, sobretudo, um elemento instigador. Há a contraposição de detalhes da imagem original (originária), simplesmente reticulados, com sua cópia pintada a mão com infinitas variantes. Há também a xerografia colorida das pinturas. Jamais exatamente idêntica ao original, apresenta-se como outra imagem, contraposta à primeira: reduzida ou ampliada, com maior ou menor contraste.

“Existem coisas que são mais bonitas na cópia, pelas sutís variações das cores. A cópia permite, também, realçar detalhes que passam desapercebidos no original.” (²)

O jogo abre um leque de infinitas possibilidades. Há o fascínio das variações possíveis em cima de uma única imagem-imagem que já é, ela mesma, mediatizada, partindo da fotografia. Ocorre um rebatimento, um jogo de espelhos.

“Há, também, uma defesa do real da fotografia, como ponto de partida da experiência estética…” (³)

Que real é este? O que se dá como ponto de partida, e do quê? A fotografia já é um instrumento codificado, o real se situa fora (e além) dela. Ela caracteriza-se pela possibilidade de ampliações, reduções e cortes, e pela superficie plana de seu suporte-elementos que, por si mesmos, desvendam o caráter ilusório de seu “realismo” e “objetividade”. Mas é necessário refletir sobre o processo aqui analisado: partir de uma imagem pronta e nela interferir, dela fazer outra coisa. De uma cópia neutra, criar um original rico em sentidos. Trata-se de processo característico da arte, o oposto da univocidade das técnicas de reprodução. Bolas para imagem de partida! O que interessa é o que se pode fazer com ela.

Recriar a “aura”, e novamente destruí-la. Segundo Walter Benjamin, a aura da obra de arte está ligada à noção de autenticidade, à obra única, ao momento privilegiado da fruição: a arte como objeto de culto, tal como era em suas origens. A noção de autenticidade não tem sentido para uma reprodução, técnica ou não, mas é, pelo contrário, fundamental para a arte contemporânea. Com a secularização da arte, ela torna-se o substitutivo do valor cultual. (&sup4;) Vera Chaves Barcellos faz da cópia um original, através da pintura; desse original, tira nova cópia, passível de ser reproduzida ao infinito… No trabalho final, existe uma coexistência instigante das cópias e dos originais. Sutilezas do jogo; às vezes, só um exame acurado permite distinguir um dos outros… E, sutileza suprema: de cada cópia, só existe um exemplar – ele torna-se também, portanto, único e talvez insubstituível. Realmente, como diz o título. “Era uma vez (e só uma vez?) uma imagem…” E a aura, como fica a aura?

Porto Alegre, 1987.

ICLEIA BORSA CATTANI.

“Jogos e/ou a Originalidade de da Cópia”. In catálogo Vera Chaves Barcellos: Cadernos para Colorir II – O Jardim. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 1987.

(1) Trecho de depoimento escrito pela artista em 1977. IN: VIGIANO, Cris et ailii. Vero Chaves Barcellos. Porto Alegre, Ed. Espaço NO-Arquivo, 1986. Esse livro traz uma análise mais campleta das fases da produção da artista, que o presente estudo não comporta.

(2) Entrevista concedida à autora: agosto de 1986.

(3) BARCELLOS, Vera Chaves. “Cadernos para colorir ou Era uma a vez uma imagem…” Catálogo de exposição. P. Alegre, Galeria Arte e Fato, julho de 1986.

(4) BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de seus meios de reprodução”. IN: VELHO, Gilberto. Sociologia da Arte IV. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.