Carlos Scarinci
Desde o início, a obra de Vera Chaves Barcellos se propunha uma clara dialética entre o aberto e o fechado, ou como coloca Gillo Dorfles, entre “innen” e “aussen” (dentro e fora), ou ainda como prefere a artista entre “o orgânico e a razão , entre natureza e as coisas construídas” (1). Numa palavra, desde logo se impunha à artista a questão da Cultura, do sentido da criatividade humana, daquelas coisas que o homem, ao assumir o seu destino, acrescenta à natureza. Mas a questão é por demais complexa pois, muitas vezes, se chega à inversão das antíteses necessárias para pensar o conceito. Realmente, ao que dar prioridade: à natureza (organismo, necessidade, impulso, espontaneidade) ou à liberdade (deliberação, construção, projeto, artificio)? A relação é ambígua, liberdade podendo indicar um deixar-se impelir pelos impulsos, o predomínio da ordem orgânica, a superação de todo artificio. Tais questões são difíceis de dilucidar, até mesmo em história da arte. Assim, trabalhar artisticamente tais oposições é, sem dúvida, colocar-se a questão do significado da arte, e mesmo a da própria história.

Re-historiar os caminhos de Vera, talvez ajude a compreender o estado atual de sua produção artística. É bom não esquecer, por exemplo que suas xilos iniciais evoluíram daquele conflito básico entre o orgânico e o geométrico ou mecânico, tendendo às grandes dimensões. Embora ela pareça enfatizar o orgânico, como uma exigência de libertação, esta passa pela e se constitui como… consciência. Daí a necessidade de propor ao espectador o objeto de arte como forma de participação, jogo combinatório, peças permutáveis de um quebra-cabeça, feito as vezes de material moderno, industrial, a própria obra sendo, de certo modo, máquina de repensar a experiência, de alcançar a consciência (a razão?) de novos resultados formais que redimensionem os sentidos… conceitualmente.

O conceitual entra pela porta da psicologia profunda, Testartes, que propõem questões (junguianas?) a quem confronta as imagens tendo que responder pelo sentido da arte, pelo sentido da existência. A questão da Cultura, que engloba todas as outras, é posta com toda a clareza na série Ciclo (1973174), vinte serigrafias divididas em quatro “tempos”: “Natureza” (o incriado pelo homem, anterior a história), “Sinais do Homem” (as marcas não intencionais), “O Objeto Criado” (do utensílio à obra de arte), e “A Ação do Tempo” (a história?). No caso específico, ainda não se trata de “testarte”: mas de uma espécie de arqueologia pessoal do saber, um portfólio mundanal, um repertório que procura abrangência. Para tal documentação, Vera associa à serigrafia, que já vinha utilizando desde as peças permutáveis, a fotografia, novo recurso técnico que lhe abre possibilidades mecânicas de ver, uma percepção mais objetiva.

Esta nova objetividade inquisitória lhe permite notoriedade internacional, pois participa com seus testes visivo-textuais da Bienal de Veneza de 1976. A intenção é quase didática, não chegando a ser terapêutica, pois propõe-se a desencadear “processos mentais’: leituras, análises de quanto foi necessário para que o objeto representado viesse a existir. A uma obra assim aberta, desalienante, as respostas correspondentes devem também de o ser. Mas o interessante é que as imagens-testes são de passagens e de obstruções, portas, janelas, escadas e muros: a permanente temática do aberto e do fechado, do sair de dentro para fora, libertar-se. O enquadramento do olho mecânico da câmara fotográfica garante a partir de então a racionalidade do escrutínio das sensações, tornando visual, o que é tátil, texturas ( Visual-Tátil , 1975), tornando imagem mecânica (cultura), o que é natureza.

Muros ou Homenagem a Leonardo retomam a reflexão do “fechado” mas descobrem nas palavras do mestre renascentista que, através dos salpicos e manchas nas pedras dos muros, se pode visionar paisagens, e mais… abrí-los. Isso permite deixar cair também os muros do próprio corpo, recuperado agora, como paisagens táteis, epidérmicas (Epidermic Scapes, 1977182) ampliações fotográficas de liberados detalhes e textural anatômicos.

Nesta mesma época , Vera participa de uma experiência grupal de vanguarda, Nervo Óptico (1976) que com Pasquetti, Dariano, Asp, Lanes, Mara, Romanita e, depois, com outros, busca a renovação das linguagens visuals em seu meio social ainda artisticamente periférico. Desfeito o grupo (1978), a convicção de Vera da importância das artes e do seu destino social, e o espírito de participação que a caracteriza, fariam tornar-se a principal animadora do Espaço NO que até 1982 constituiu um núcleo de pesquisa jovem e mesmo de intercâmbio nacional de uma experiência artística de inovação, nunca igualado, antes ou depois, em Porto Alegre/RS.

Neste meio tempo, ela viaja freqüentemente. É Nova York, Amsterdam, Düsseldorf, Barcelona, etc. onde produz anotações fotográficas que traduz, experimentando as possibilidades em preto e branco e as cores, na linguagem reprodutiva do Xerox, que ela soma às da fotografia. Nascem assim álbuns como Keep Smiling, Manequins de Düsseldorf, Memórias de Barcelona, Momento Vital e Da Capo, onde, além das transmutações do urbano (cityscapes), em natureza (landscapes), quer como ruína, quer como imagem modificada, em alguns casos liquefeita, Vera volta-se para os esteriótipos humanos do cotidiano, essa espécie outra de entropia, ao sorriso convencional, por exemplo, a mesmice dos gestos, das atitudes, das vestimentas, à teimosa recusa ao criativo, ao diferenciado e ao diferenciador. Mas, o que parece importante aqui é a utilização do Xerox, pela multiplicação facilitada de sua reprodutibilidade possível. A obra de arte como material se banaliza, torna-se mera mídia, comunicação de massa. Mas, Atenção.. O Processo do Perceber é Seletivo , mesmo, ou principalmente, quando o escrutínio da realidade se faz por meios mecânicos. Pode também sê-lo porém, quando a observação é feita através de meios tradicionais como o desenho. A percepção é seletiva, isso quer dizer que é fragmentadora, e o sentido, a significação da representação é que é um trabalho de recuperação do interesse sensível, uma reconstrução da inteligência, um resultado conquistado, embora não unívoco.

Começa assim para Vera o jogo pós-moderno das cópias, isto é das reproduções de objetos banais, de produções as “mais epigonais e impostoras da arte” mas que também podiam ser reais obras de arte, repetidas inúmeras vezes, mas fragmentariamente ampliadas, repintadas, xerocadas, isto é, modificadas no próprio processo de reprodução.(2) A proposição crítica agora e mais direta, dispensa o questionamento verbal, torna o próprio olho interrogativo, numa “ressensibilização do olhar”(3). E, o que é mais, faz entrar em colapso os próprios meios da representação e, até, o próprio significado do que arte é.

Aracy Amaral chamou a atenção para o uso não realista que Vera faz da fotografia, mas isso é o de menos(4). Na verdade, a partir destas fragmentações e escrutínio das imagens, todo um processo deconstrutivo se instaura. O referente, o objeto real a que se refere a imagem fotografada (o significante) e o conceito dele pensado pelo espectador (o significado), perde detinitivamente a vez. Que o referente, a realidade, existe é ocioso por em questão, mas ela só se entrega no processo de percepção, na expressão, seja através do olho, do desenho, da máquina fotográfica, ou da arte em geral, como processo codificado, ordem estabelecida arbitrária e historicamente, mesmo na percepção como tal, por fisiológica que seja. Este fenômeno é que funda os estilos, possibilita a diferença, deflagra a liberdade. Do real só ficamos sabendo através do discurso, seja ele folclórico, teológico, artístico ou mesmo científico.

Pois bem, o que Vera Chaves Barcellos veio fazendo ultimamente tem sido denunciar a fotografia como linguagem, na medida em que suas “cópias” repetidas se mostram levemente diferentes a cada vez, pois o meio se modifica aleatoriamente, seja por diferença da retícula, da luz, da cor, ou da própria sensibilidade do suporte. A fotografia que parecia meio capaz de reproduzir a realidade, o referente, tal e qual, de repente, bum!, Explode em linguagem, em estrutura socialmente convencional de comunicação.

Isso já se tinha visto em A dama com a mão no peito , aquela espécie de montagem sincrônica, estática, exibida no Museu de Arte do Rio Grande do Sul como uma das páginas dos seus Cadernos para colorir II , em 1987.

Mais recentemente, a participação de Vera Chaves Barcellos no Projeto Missões: 300 Anos , deu-lhe oportunidade de transformar sua visão fragmentadora em uma instalação de quatorze fotografias “manipuladas”, isto é cópias diferentemente pintadas, as cabeças ou as parses que delas mais se aproximam separadas em outras quatorze fotos, enterradas no carvão contido numa grande caixa no chão. Em Busca da Cabeça, Em Busca do Coração , uma das peças mais signiticativas da mostra A Visão do Artista: Arte sobre arte: a visão contemporânea das Missões , colocava um problema que já estava embutido em toda a obra de Vera, mas que assim teve oportunidade de assumir-se mais claramente (5). E que toda ação fragmentadora, toda a deconstrução da coisa, ou mostração do meio, da linguagem, historializa, o pronunciamento, artístico ou não, como tomada de posição, como consciência que reacende no coração, chamas apagadas, viradas coisa fria… pétrea, como um compromisso de fazer a história ter sentido, significar.

É o que se vê na presente exposição. Pronunciamentos foto-pictóricos, desmistificadores da própria monumentalidade do herói, exemplo e matriz da história, personagem para repetir (ou colorir se se quizer), mas ironicamente solenizado pela mortalha enchovalhada que se extende com grinalda de ponta a ponta da série fotográfica nove vezes repintada de O Peito do Herói . A própria dimensão para-monumental não será ela mesma uma ironia pós-moderna? Assim também os trinta e dois módulos do Jogo de Damas, que uma régua de quase sete metros sublinha, sob medida. Mas o que é a medida senão fragmento, como os deste A Grande Taça , em dezesseís partições fotográficas, que se diversificam pelo close-up, pela ampliação, pela mudança de tom e luminosidade. Alias, fragmentos da mesma taça que reaparece duplicada em colorações diferentes, no díptico Em Que Taça Beberei , quatro vezes repartidas cada uma, mas feitas miríade de cacos na caixa acrílica que jaz sob as reproduções.

Ironia que se pode flagrar nas outras peças da mostra, nesta Natureza Morta (O Jardim) , que brinca de Abstracionismo, num quase trocadilho com o mito modernista do achamento utópico de uma linguagem universal como finalidade da arte pura.

Se pode concluir que o avanço da arte de Vera Chaves Barcellos se fez ultimamente pela aquisição de uma consciência irônica, pronta para questionar tanto a arte como a história. Talvez não falte muito para que ela venha a questionar o próprio caráter institucional do fazer e veicular arte, atravessando a consciência adquirida da linguagem e do material com o questionamento da postura do artista frente a si mesmo e à sociedade nacional e planetária do seu tempo, dentro do quadro pós-moderno de uma História em permanente necessidade de ser refeita.

CARLOS SCARINCI , 1988.

Crítico de arte. Vive em São Paulo.

In catálogo Vera Chaves Barcellos, Obras Recentes. Porto Alegre: Galeria Arte & Fato, 1988.

1 Cito Dorfles a partir do comentário de Cris Vigiano, “A Experiencía Gráfica’ in Vera Chaves Barcellos, vários autores, Porto Alegre/RS: ESPAÇO NO Ñ ARQUIVO, 1986. A distinção entre estes dois aspectos da obra de V.C.B. e sua relação dialética foi, entretanto, estabelecida pela primeira vez por mim, em apresentação do catálogo da mostra da artista na Biblioteca Municipal de Santa Maria, em 1968, depois retomada em meu livro A Gravura no Rio Grande do Sul 1900/1980 , Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1982.

2 A citação levemente modificada é de Luis Francisco Pérez, em comentario sem título, no catálogo Vera Chaves Barcellos: Cadernos Para Co/orir II Ñ O Jardim , do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1987.

3 Icléia Borsa Cattani, “Jogos e/ou A Originalidade da cópia” In Vera Chaves Barcellos: Cadernos para Colorir IIÑO Jardim. Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 1987.

4 Veja Aracy Amaral. “Perceber como Forma de Criação”: In Vera Chaves Barcellos , vários autores Porto Alegre/RS: Espaço NO, 1986.

5 A mostra um Projeto Cultural Iochpe, percorreu o Brasil, sendo inaugurada em Porto Alegre em maio deste ano, no Centro Cultural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com patrocinio do Ministério da Cultura, da SPHAN / Pró-Memória e Governo do Estado do Rio Grande do Sul e teve a curadoria de Frederico de Morais.