1900/1980 de Carlos Scarinci
A vinda de Marcelo Grassmann, para um curso de litografia, em junho de 1962, no Atelier, de certo modo veio reforçar essas tendências. Herdeiro do que há de fantástico na arte de Goeldi, Marcelo, muito cedo, construiu um mundo pessoal, feito de referências ao modo como seus personagens – a criatura humana em geral – se apresentam, escondendo-se, defendendo-se, sob mil carapaças articuladas, armaduras e disfarces, dentro dos quais são tantos animais como cavaleiros, bichos, homens e mulheres. O disfarce constitui, assim, a fábula, o bestiário, não à maneira medieval como muitos pretendem, mas renascentista, senão barroca, a linguagem partindo de Rembrandt, o desenho, a água-forte retomados, redefinidos na litografia, para dizer um mundo sempre, em que se pode constatar a comédia, se não fosse trágica, do homem hoje.

Se não se pode pretender encontrar uma influência direta da obra de Marcelo Grassmann sobre a de artistas gaúchos que com ele conviveram e estudaram, não se pode deixar também de perceber alguma referência a seus seres encarapaçados nos guerreiros-armaduras idealizados de Stockinger. Também nas gravuras de Henrique Fuhro, de quem se falará adiante, algo do jogo de metáforas que caracteriza a semântica de Marcelo, no entanto, dissociadas e, claro, acrescidas de significações pessoais outras, pode talvez ser identificado. No entanto, a contribuição maior de Grassmann para a gravura rio-grandense foi, além do seu exemplo como artista realizado, de caráter principalmente técnico: reintroduzir entre os artistas sulinos a prática, há muito não mais exercitada, da litografia. Melhor ainda, foi a de reunir em torno dessa prática um número considerável dos melhores artistas gaúchos. Embora, apenas dois deles continuassem depois a exercer-se nessa técnica – Danúbio Gonçalves e Vera Chaves Barcellos -, seguiram o curso Francisco Stockinger, Regina Silveira, Alice Soares, Vasco Prado, Zorávia Bettiol, além de alguns outros.

Para Vera Chaves Barcellos (1938), o curso de Marcelo veio confirmar suas primeiras decisões de artista. Iniciara sua formação no Instituto de Belas Artes em 1959, partindo, no entanto, para a Europa em 1961, lá estagiando em Londres, Paris e Rotterdan. O ponto mais significativo dessa fase de formação, Vera atingiu-o em 1962, quando, por influência de Johan van Reede, de Rotterdan, abandonou a figuração pelo abstracionismo. Mas seus passos iniciais eram ainda tímidos, pelo menos contidos, a disciplina geométrica favorecendo uma expressão um tanto esquemática. A lito, embora já a tivesse estudado na Europa, permitia-lhe, agora, desenvolver uma procurada espontaneidade. Assim, já em 1964, pode-se constatar que sua gravura começa a tender para uma expressão bem mais livre, mais lírica, tendência que irá acentuar-se nos anos vindouros, talvez por influência de Iberê Camargo que, em 1965, ministrou um curso de pintura no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, do qual Vera participou. Ela aproxima-se assim de uma expressão informal, a ordem disciplinada da geometria cedendo lugar a um certo caos, a uma efusão poética de quem procura, através do gesto que fere a madeira, libertar-se, identificando-se, numa experiência generalizante, com a natureza, a paisagem, os ventos. Com efeito, começa a dominar a gravura de Vera, desde 1966, um conflito poético entre o orgânico e o racional (geométrico), entre natureza e artifício, entre forma aberta (liberdade) e forma fechada (coerção). Esse movimento (pessoal) vai até 1973, numa crescente onda de entusiasmo, que amplia as formas, as dimensões da gravura mesma, movimentando-as em ritmos abrangentes do todo e das partes, as cores ganhando timbres e vibrações inesperados, os cortes abrindo claros ou mesmo brancos contrastantes com as áreas chapadas ou texturadas de cor. Cria assim uma variedade de sinais, abundante, viva. A arte de Vera Chaves Barcellos floresce, desabrocha, multiplica-se exuberante, mas permanece crítica, a efusão esquecendo o conflito, a luta, a rebelião, pois quer ser afirmação e conquista. Quer, ao mesmo tempo, ser mensagem, alcançar o outro, fazê-lo participar. A partir de 1967, portanto, a artista inicia uma fase de propostas lúdicas, com xilogravuras em acrílico, permutáveis, sobreponíveis, às vezes quebra-cabeças (já testes), que se oferecem ao espectador para que participe da solução formal variável mas possível. Ao mesmo tempo, desde 1971, a leitura de Jung evidencia suas preocupações com a psicologia profunda, analítica. Tais preocupações atravessam a obra de Vera, numa busca mais consciente de símbolos para expressar sua compreensão dos conflitos básicos, vitais, desde o nível orgânico, do biológico, até voltar-se para os símbolos eles mesmos, sua produção arquetipal, individual e coletiva. Um pouco antes, em 1969, Vera participou do curso ministrado, no Instituto de Belas Artes, por Julio Plaza, construtivista espanhol, acompanhado de Regina Silveira, sobre as técnicas da serigrafia. No entanto, mais do que transmitir conhecimentos puramente técnicos, estes dois artistas recentemente vindos da Europa, onde tinham podido acompanhar de perto a efervescência intelectual do final dos anos 60, discutiam as tendências mais atualizadas da arte internacional, aspectos da comunicação e da informação artísticas, sua dimensão semântica, os processos de organização e transformação de elementos ou de “media” múltiplos e, em especial, a questão da participação do espectador na obra de arte. Essas questões que já vinham preocupando Vera, encontrarão em suas mãos soluções pessoais que envolvem também suas preocupações com a psicologia. Assim, a partir de 1974, deixa a gravura como prática pura, autônoma, para, empregando a serigrafia, que lhe permite o uso da reprodução fotográfica, propor ao espectador uma imagem questionante, abertura projetiva que ele, consumidor de imagens e objetos, deve preencher a partir de sua experiência. Nasceu assim o que a artista denominou de “testarte”, proposta de uma nova relação entre artista e público, como deste com a própria arte. (1) Essas pesquisas psicológico-conceituais levaram-na a questionar os signos naturais contrapostos aos produzidos pelo homem e, na medida que isso evidencia o problema da cultura, sua arte tem tendido para abranger o histórico, senão mesmo o social e o ideológico. Esta nova consciência da responsabilidade do artista tem conduzido Vera Chaves Barcellos a tomadas de posição como a de fins de 1976, quando juntamente com um grupo de artistas jovens de vanguarda, protestou, em manifesto público, contra as usurpações condicionantes do mercado de arte. Esta tomada de posição deu uma definição mais clara ao grupo Nervo Óptico de que faziam parte jovens artistas como Pasquetti, Asp, Dariano, Telmo Lanes, Magliani, Maria Tomaselli e Brito Velho, Ana Luiza Alegria, Anico e Jesus Escobar. Mas o grupo foi se desfazendo dado a divergências e radicalizações quanto ao sentido das vanguardas e o significado dos medias tradicionais, tendo durado, embora reduzido, mais algumas manifestações e se transformado no atual Espaço NO. Mantido pela própria artista, pode ser considerado o único espaço alternativo para a arte rio-grandense capaz de propor eventos artísticos em criativo desacordo com a mesmice das exposições das galerias e das salas oficiais rio-grandenses. Contudo, a atividade de Vera Chaves Barcellos depois de 1973, já cai fora dos limites deste estudo, que só procura referir-se à gravura propriamente dita. Se se cita superficialmente a atividade desta artista depois que deixou a prática da gravura como um objeto em si é que os processos que utiliza atualmente são ainda gráficos e sua reflexão sobre a arte hoje é sem dúvida decorrência do seu exercício anterior como gravadora.

(1) Com peças dos seus “testarte”, Vera Chaves Barcellos compareceu a Bienal de Veneza em 1976.