de Paulo Silveira
Vera Chaves Barcellos tem seu currículo quase todo dedicado aos problemas conceituais da arte, da percepção e da integração do indivíduo em sistemas. Sua obra é, por isso, essencialmente sistêmica. Fez poucos livros, mas utilizou-se intensamente da potência temporal inerente a eles, ao gesto de folhear e à perscrutação da página, para esculpir a memória adquirida do leitor observador. Nos seus livros a seqüencialidade é amplificada pelo ir e vir: a lembrança do que já foi e a expectativa do que será. O aspecto lúdico é sempre primordial ao aspecto gráfico e normalmente ativado pelo uso da fotografia. Como volumes, seus livros são extremamente despojados. Embora ela tenha produzido com preciosismo (Exercícios visuais-tácteis, 1975), seus outros trabalhos são cadernos simples, normalmente compostos por colagens que utilizam a fotocópia, em tamanhos “ofício”. A encadernação, como tal, praticamente inexiste. As páginas são unidas por espirais plásticos e os volumes têm capas inexpressivas semi-sintéticas, cinzas ou de cores neutras, dessas utilizadas em lojas de fotocópias. As capas nem mesmo têm títulos. Para Vera, o primordial é o exercício. Importa-lhe a obra ativa, mais que a obra passiva.

Em Pequena estória de um sorriso (ou passagem do verde para o amarelo), 1975, um grupo de imagens de um índio forte e saudável é aos poucos alterado pela substituição de uma a uma pela imagem de um índio aculturado, sorridente e patético. Essa seqüência é acompanhada por uma segunda, de desenhos de bocas sorrindo trocadas aos poucos por bocas sérias. Esse trabaho apresenta uma direção linear, onde uma página (ou folha) pede pela sua posterior, até uma conclusão. O livro “narra”.

Epidermic scapes, 1977, também na versão em cartaz, não tem seqüencialidade explícita. Ele acompanhou outros projetos homônimos da artista. Cada página contém uma grande apliação fotográfica da impressão de uma pequeníssima área da superfície do seu corpo. No verso da capa, Vera apresenta sua proposta de documentação: “São paisagens epidérmicas e também uma escapada de toda uma problemática interna, de símbolos e projeções, de qualquer espécie de sofrimento ou subjetivismo. É um trabalho de superfície, ao nível da epiderme”. Em ordem inversa, Da capo, 1979, terá todas as páginas com as mesmas fotos, absolutamente iguais (interior de estação de metrô e interior de um vagão), legendadas com a ordem dos dias que passam. Haverá uma seqüência subliminar: a idéia do passar dos dias, iguais, um após o outro. Esses são livros que “descrevem”.

Em Atenção – processo seletivo do perceber, 1980, retorna o jogo. Não é um, mas sim dois livros também na forma de cadernos, que propõem o exercício da memória como participante do processo perceptivo. Um dos livros traz em suas páginas um pequeno seguimento quadrado de uma foto maior de multidão, externa e independente ao livro, que será uma espécie de mapa de onde ele saiu. Nossos olhos saem e retornam das páginas para a foto, focalizando tempos e espaços diferentes, fazendo agora a perícia de um momento passado. No outro livro, página após página uma outra foto de multidão se repete, sem nenhuma alteração. É sempre a mesma foto. Mas dessa vez elas têm legendas que conduzirão o nosso olhar: “a temperatura é amena e as pessoas usam roupas leves…”, ou “os guarda-chuvas abertos, com o início da chuva…”, ou ainda “um menino segurado pela mãe”. Os dois livros estiveram integrados a um projeto conceitual maior, de discussão dos princípios da atenção. Eles são livros que “dissertam”.

Vera produziu apenas um livro somente com texto, Movimento vital, 1979, em fotocópias. Nele, o único texto é manuscrito, um pouco a cada página: “eu”, depois “eu estou”, depois “eu estou aqui”, mais adiante “eu estou aqui presente agora olhando”, até a conclusão da idéia. Se a primeira palavra é “eu”, a última é “fim”. O trabalho tem um lirismo sedutor que integra o seu leitor ao próprio caderno que ele tem nas mãos. Esse lirismo diferencial em sua obra é, como se pode imaginar, fruto de uma situação também diferencial.

Tinha circunstâncias pessoais, assim, que me provocaram de estar             trabalhando menos nessa época. Que foi o ano de 79, se não me falha a memória. Então, eu tive essa idéia… Me lembro que eu estava indo para Carazinho, meu pai estava mal, doente, e no carro, sozinha, tive essa idéia de fazer esse livro. Uma coisa, assim, muito  circunstancial. E é dos poucos momentos que eu me lembro  exatamente quando eu tive a idéia, não é? Puxa, eu vou fazer um livro assim, vai começar com “eu”, “eu estou aqui”, aquela presença,             não é?, e vai ser só texto, eu vou escrever com manuscrito, e tal, então vou fazer uma tiragem, xerox, enfim… E fui desenvolvendo a      idéia… Quando cheguei lá em Carazinho, já estava pronta a idéia do             livro. Depois eu fiz. (Depoimento para esta pesquisa)

Araci Amaral (em Vigiano, 1986, p.34) observa essa diferença de atitude estética.

Se a Pequena história de um sorriso é indicativa de uma             preocupação social através de suave ironia, já Momento vital (1979),             de natureza concreta, nos remete como observador como uma fusão             com o autor do trabalho, em experiência singular, sobretudo em             suas primeiras páginas, onde não há margem para dicotomias que             romperiam o “segredo” dessa íntima relação autor/leitor.

A presença da decifração como fundamento da relação entre a obra e o fruidor oferece a “coerência interna da trajetória dos trabalhos de Vera”, segundo Icléia Cattani.

Mas a construção de tais jogos passa pela desconstrução da imagem        de partida: da totalidade faz-se fragmentos que, decifrados,             permitirão reconstituir a imagem. Com uma sutil diferença: a             imagem reconstruída guardará para sempre os cortes dos             fragmentos, como cicatrizes. Sua “unidade” será a reconstituição de             seus pedaços.
(Kern, Zielinsky e Cattani, 1995, p.189)

Difícil desconstruir o tempo, é muito mais fácil a metáfora através da desconstrução do corpo físico ou imagético do livro. Esse é, portanto, um momento de passagem entre tempo e espaço. É a confirmação no livro, bem como neste esforço de entendimento, do exercício de sua esquize: tempos na fundação de um só corpo.