Maria Beatriz Furtado Rahde
Flávio Vinicius Cauduro
Profs. do PPGCom da FAMECOS/PUCRS
RESUMO
Este artigo refere-se ao esgotamento dos modelos estéticos da modernidade e o surgimento de paradigmas transformadores do contemporâneo. Neste sentido enfatiza alguns trabalhos pioneiros da artista plástica gaúcha Vera Chaves Barcellos que, com suas formas simbólicas, no início de sua fase pós-moderna, estabelece relações entre as artes plásticas e o processo de comunicação, desafiando o espectador a participar ativamente da interpretação de suas obras, que exploram a produção de sentido por meio de textos híbridos.

ABSTRACT
This article deals with the decay of the aesthetic models of modernity and the gradual appearance of the new transforming paradigms of our contemporaneity. As a matter of example it calls attention to the pioneering work called Testartes created by the brazilian visual artist Vera Chaves Barcellos who, at the beginning of her post-modern phase, put into relationship her visual art and the process of communication, challenging the viewer to participate actively of the decoding of her mixed-media works.

PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS)
Comunicação visual (visual communication), Modernidade (modernity) e Pós-modernidade (postmodernity).

INTRODUÇÃO
As imagens criadas durante o período da modernidade buscaram o novo, que teria de surpreender até o inovador. Imagens plenas de ressonâncias e suavidades não representavam mais valor algum. Em oposição ao Classicismo, ao Romantismo, ao Realismo, ao apego de todo e qualquer valor tradicional, as idéias progressistas da modernidade identificaram-se com o racional, com renovações nas artes plásticas, como na produção de Vera Chaves Barcellos durante os anos 60.

A escolha pelas imagens de Vera Chaves Barcellos é significativa por ser ela uma das primeiras artistas gaúchas a trabalhar imagem e texto em conjunto, utilizando métodos de produção gráfica industrial (serigrafia e off-set), bem como processos de visualização fotográfica nas artes plásticas do Rio Grande do Sul, no final dos anos 60.

Seus trabalhos imagísticos deste período, como naturezas mortas ou paisagens, executadas em óleo sobre tela, já com a forma em decomposição abstrata, deram origem a pesquisas como Abstrações, em técnica de xilogravura. E é com a xilo que suas obras mais se desenvolvem, produzindo formas orgânicas, formas da natureza que, certamente, relembram seu contato com a própria infância, no interior do Rio Grande do Sul. Plenas de experimentações e descobertas estas xilogravuras adquirem grandes dimensões, imbuídas de caráter simbólico, e guardam, na sua essência, um significativo envolvimento cultural e racional que vai da ideologia à estética, já então buscando maior comunicação com o espectador, num processo contínuo de transformação da própria consciência e do mundo.

Percebemos em suas obras não apenas uma visão de reprodutibilidade da natureza, mas de um real transformado, em que o imaginário e o imaterial estão inseridos na sua produção, na sua participação na sociedade e na cultura modernas.

Conhecimento e sensibilidade estão intimamente amalgamados nestas obras monumentais dos anos de 1968-1969, quando a artista se propõe a utilizar cores vibrantes, grandes contrastes de claro-escuro, numa variedade de simbolismos de formas orgânicas.

O novo estava por toda parte, seguindo os manifestos modernistas que se centravam justamente no tornar novo, rejeitando toda e qualquer manifestação gráfica ou plástica que remetesse às formas visuais tradicionais ou já consolidadas.

Preocupada com novas linguagens, Vera procurava, certamente, encontrar outras maneiras de representação imagística, cuja execução dependeria da novidade comunicativa (Harvey, 1989/1998).

É esta preocupação de comunicar-se com o espectador que leva a artista a elaborar, também no mesmo período, o que denominou gravuras-objetos, criando peças bi e tridimensionais, como Trípticos para combinações (1967), Permutáveis/Cambiáveis e Cubo (1970), propondo ao espectador, talvez pela primeira vez, uma participação na movimentação destas peças-jogos, com as quais era possível estabelecer variantes de composição ao serem manipuladas. Estas seriam suas primeiras experiências concretas de Obra Aberta a que Umberto Eco referia: “A abertura, entendida como ambigüidade fundamental da mensagem artística, é uma constante de qualquer obra em qualquer tempo” (1962/1971, p.25).

Sobre esse aspecto há uma referência da artista, de 1969 (In: Vera Chaves Barcellos, 1986):

Estas são obras abertas no sentido mais literal do termo, pois contam com a participação do espectador. Possuem uma entrada no tempo, mas não como obra cinética, mas porque sua apreensão não é imediata, mas gradativa, de acordo com as diversas possibilidades de disposição das partes. A composição é dinâmica assim como a Vida. (p.11)

Para interpretar estas obras executadas em plena transição da modernidade para a pós-modernidade, a tradição hermenêutica apresenta grande relevância A assertiva de Thompson (1990/1995) é de que a hermenêutica de profundidade, em suas três etapas – análise discursiva das formas simbólicas, análise sócio-histórica e análise interpretativa -, vai além dos métodos de uma análise formal. As formas simbólicas de Vera, na década de 60, antecipam talvez novos significados imagísticos, constituindo-se em outras visualidades, que revelam a inquietação da artista no seu processo de comunicação com o público.

Procurando outros caminhos, Vera passa a produzir serigrafias a partir de análises fotográficas. Cresce o seu interesse pela fotografia e a fotolinguagem se desenvolve nos anos 70, como O Muro, uma serigrafia realizada a partir da fotografia de uma parede de tijolos, com o seguinte texto, escrito pela mão da artista, segundo o esquema abaixo:

tijolo
terra
água
fogo
a r
argamassa

homem
gesto
chuva
sol
tempo

A modernidade desta fase privilegia a interpretação da autora sobre sua própria obra, que está ainda centrada na sua própria subjetividade.

O grande salto de Vera foi abrir espaço para si mesma, e também para o espectador registrar suas interpretações, frente às obras da artista. E, como diz Aracy Amaral (In: Vera Chaves Barcellos, 1986), Vera nos traz a

… imagem como uma instigação à decifração pelo observador, que pode se entreter com ela, mesmo se desinstrumentalizado, do ponto de vista de iniciação artística, porém apto a receber com emoção uma proposta de nível sensória. (p.33)

Assim iniciam-se os Testartes de Vera, dando início à sua transição da modernidade, que buscava a beleza associada ao racional único, para uma pós-modernidade sem verdades absolutas. A ambigüidade ou a multiplicidade de significados que agora aparecem em sua obra constrói a polissemia dos sentidos pela qual “a aceitação deste estado não é, na realidade, senão o reconhecimento do aspecto complexo, polissêmico, da humana natureza” (Maffesoli, 2000/2001, p.80-81), o que se evidencia nos seus Testartes.

TESTARTES
As oito séries de imagens que constituem o conjunto Testartes (1974-1976) inauguram uma nova fase na arte de Vera Chaves Barcellos, que podemos caracterizar como sendo pós-moderna. Como veremos, essas várias séries de imagens, todas elas obtidas pela tecnologia da fotografia, não pretendem ser “obras de arte” formadas e interpretadas por mãos, olhos e mente privilegiados de um artista, mas sim registros de cenas do cotidiano que servem de pretexto para estimular a participação do outro no processo de construção de seus significados. Em alguns dos Testartes a autora facilita a interpretação do outro, apresentando-lhe sempre uma legenda textual com duas alternativas bem óbvias de sentido (Testartes I a IV). Mas a partir do Testartes V até o último, Testartes VIII, a interpretação do espectador fica totalmente livre, não direcionada, como se Vera estivesse agora dizendo: “Uma vez que você já sabe como funciona o jogo, vá em frente, diga-me o que está vendo”. Percebemos que a artista mistura em suas pranchas imagens fotográficas com anotações verbais, estratégia típica de trabalhos pós-modernos e que favorece a hibridação, a colagem e os jogos de linguagem, em detrimento da pureza visual das formas significantes.

Basicamente, Testartes são oito séries de imagens fotográficas de pessoas e objetos do cotidiano que demandam explicitamente a interpretação dos espectadores, através das indagações verbais que as acompanham, individualmente ou para toda série. Assim, as imagens não têm títulos, só legendas inquisitivas, individualizadas ou genéricas, enquanto que as séries que elas formam são designadas em ordem cronológica como Testarte I, Testarte II e assim por diante, até Testarte VIII.

Os textos e as imagens são, na verdade, pretextos para ativar o processo de significação no espectador, levando-o a participar ativamente da construção de significados para as representações propostas, o que possibilita a qualquer um tornar-se co-autor do discurso dos trabalhos, com maior ou menor grau de originalidade, com maior ou menor grau de plausibilidade. Para que os espectadores se sintam à vontade nesse processo, as imagens e as indagações que as acompanham são muito simples. Por sua aparente banalidade, as séries desafiam mais ainda o repertório cultural dos espectadores, pois, afinal de contas, são eles que devem encontrar o sentido artístico, a aura de cada trabalho. O que de imediato leva muitos dos interpretadores a descartarem os significados mais imediatos, enquanto dão asas à sua imaginação, procurando por sentidos mais complexos ou que despertem sensações mais raras e especiais. Talvez seja essa a proposta maior dos Testartes: atrair os espectadores para um jogo hermenêutico em que o significado final de cada representação estará sempre em deslocamento, em que o processo de significação estará sempre em aberto, em que o sujeito predicante estará sempre en procès.

A palavra Testartes que identifica essa coleção esclarece e torna evidentes as idéias de participação e de jogo que suas imagens propõem, pois conotam as idéias de teste e de arte, como que convidando o sujeito a encontrar, por esforço próprio, as características visuais e táteis que fazem desses conjuntos obras de arte.

Diz a autora, no texto geral da apresentação dos Testartes:

Estou interessada em processos mentais. E para desencadeá-los uso imagens. Imagens diversas. Algumas colocadas com a finalidade de uma leitura, numa reconstituição mental de tudo quanto foi necessário para a existência do objeto representado.

Em alguns casos, as imagens são pretextos para estimular a lembrança de sensações primárias, físicas, “para despertar sensações táteis, numa evocação do toque agradável ou não, áspero ou macio, etc.” das superfícies representadas, num “exercício de concentração silencioso”.

Em outros casos, continua Vera, “formas ou situações ambíguas são provocadoras de escolhas, ações ou projeções pessoais, onde a memória e conteúdos de diversos níveis afloram nas respostas às perguntas formuladas, dando-nos as ‘imagens da imagens’”.

A série Testarte I, de 1974, é constituída por um conjunto de 7 lâminas monocromáticas impressas em off-set, numa tiragem de 500 exemplares, que mostram fotos em alto contraste de portas, janelas, escadas e muros antigos, cada uma com um texto curto que interroga e induz o espectador a formular hipóteses de ação e seus resultados. Por exemplo, para a lâmina de abertura da série, em que aparece a imagem fotográfica de duas portas em sucessão, uma aberta e a outra fechada, num corredor de uma casa antiga, a legenda correspondente descreve uma situação familiar e pressupõe uma possibilidade de ação quase óbvia, prometendo como recompensa uma simples progressão espacial:

Você está defronte à porta. Ela tem uma das folhas aberta. Você vai passar por ela e vai encontrar a outra porta que está fechada. Você vai conseguir passar e atingir o outro quarto?

Para uma outra foto que mostra o detalhe de um muro em deterioração, a legenda correspondente pressupõe um repertório de possíveis sensações imaginárias que poderiam ser estimuladas pela imagem, reforçando o convite à participação do imaginário do espectador nesse jogo de faz-de-conta:

Há um pedaço de muro à sua frente. Tente sentir, como se o tocasse, as reentrâncias da pedra, a temperatura dos musgos, a textura do reboco descascado. Ou você se recusa tocá-lo?

Já para a foto de uma parede rabiscada com grafites a legenda sugere vários sentimentos e ações que o espectador poderá experimentar, como que a enfatizar que as opções de resposta não precisam ser dicotomizadas:

Eis uma parede velha e descascada, toda escrita. Você passa e não presta muita atenção, você acha apenas bonito, você tenta ler o que escreveram ou participa também escrevendo alguma coisa?

Na última estampa da série, que mostra uma velha, longa e deteriorada escadaria, que parece ser utilizada para escalar um morro qualquer, a legenda parece ter desistido de antecipar possíveis alternativas imparciais de ação e sentimento do espectador, adotando ao invés a tática de oferecer novamente apenas duas possíveis alternativas, mas sendo uma muito rica em sensações e significados, enquanto a outra alternativa é banal e quase indiferente:

Você vai sentir e subir a escada, o caminhar lento e ascendente, o conquistar a altura, degrau por degrau, as irregularidades do calçamento, circundando os olhos pelos arredores e desvendando cada vez mais a vista do alto, ou vai ficar aqui parado, simplesmente contemplando os degraus?

Nessa última lâmina fica mais claro o propósito dos Testartes: estimular o espectador a participar de um jogo de simulação e de sensações, em que as mentes mais imaginativas e sensíveis são melhor recompensadas em termos emocionais.

Em Testartes II (1975), constituído por 6 painéis fotográficos 50cm X 60cm, o jogo de questionamentos de imagens através de legendas prossegue. São detalhes de sementes no chão, espinhos de plantas, copas de árvores, um rochedo à beira-mar, um portão de ferro, uma escada. E indagações que sugerem sempre duas alternativas de resposta, sendo uma delas uma interação com o objeto representado e a outra insinuando apenas uma apreciação visual do objeto e uma certa impossibilidade de ação posterior, como: “Você vê um portão que se abrirá facilmente ou uma fechadura hermeticamente fechada?”

Testarte III: Visual Tátil (1975) é constituído por 1 painel com um texto genérico, pedindo que o espectador concentre-se nas imagens imaginando poder senti-las tatilmente em todos os seus detalhes, com mais 15 painéis fotográficos 30cm X 37cm que atuam como estimulantes visuais-táteis, representando close ups de muros, plantas, tábuas, chãos, grades, pedras, cascas de árvores, e assim por diante.

Testarte IV: Que há por detrás? (1975) é um conjunto de 7 painéis fotográficos 50 cm X 60cm, com legendas, que descrevem vários tipos de aberturas fechadas e passagens (portas, janelas, portões, muros, escadas, caminhos) e que indagam ao espectador o que há por detrás ou além delas. Observa a autora que as perguntas e as imagens provocam projeções do imaginário do espectador e que o caráter projetivo da série, inspirado em testes psicológicos, é evidente.

Por ocasião da exibição dos Testartes I a V, na Bienal de Veneza de 1976, Vera colocou uma mesa com cadeira em frente às lâminas dos Testartes IV fixadas na parede, para que os espectadores preenchessem um formulário que estava sobre a mesa em frente e o colocassem numa urna, deixando registradas suas impressões e interpretações daqueles trabalhos para posterior análise da artista.

Testarte V: Simetrias (1976) é um conjunto de 11 painéis fotográficos 24cm X 30cm sem legendas, no qual as imagens são formadas por montagens diversificadas de uma única foto em alto-constraste de raízes, em diversas posições. As fotos são duplicadas e montadas espelhadas, com um eixo de simetria vertical. À maneira do teste de Rorschach, o espectador é interpelado por uma única pergunta genérica: “O que vê nas seguintes imagens?”.

Testarte VI: Muros ou homenagem a Leonardo (1977) é formado por um conjunto de 12 painéis fotográficos 30cm X 35cm, mais um painel de texto, que provoca os espectadores com uma citação de uma passagem muito conhecida de Leonardo da Vinci (de seu Tratado da Pintura), em que ele recomenda que exercitemos a nossa imaginação, transformando por semelhança certas manchas, riscos e salpiques de tonalidades variadas de muros em figuras e imagens de pessoas, árvores, vales e colinas “para avivar o engenho e várias idéias”.

Testarte VII (1976/1977) consiste numa só imagem fotográfica pouco nítida, tamanho de 30cm X 35cm, em preto-e-branco, com aplicação de retícula, que mostra um adolescente correndo sozinho por uma calçada estreita, tendo um muro alto à sua esquerda, vindo em direção ao espectador, levando algo na mão direita. A imagem é acompanhada por um texto, sugerindo ao leitor que componha uma estória, ajudado pelas interrogações quem é?, onde está?, de onde vem?, para onde vai? Esse Testarte, quando aplicado com a ajuda de formulários impressos em amostras de adolescentes, de quatro escolas de diferentes níveis sociais, mostrou que as estórias compostas mostravam visões de mundo bastante distintas, conforme cada nível social, como era de se esperar.

Finalmente, o Testarte VIII: O cofre (1979/1980) é um projeto de arte postal, sendo constituído basicamente por um cartão postal horizontal de 15cm X 11cm, impresso em off-set nas duas faces, mostrando em uma delas a imagem em preto-e-branco de um cofrinho de criança, tipo baú, com uma alcinha, e propondo, no verso, uma única pergunta, Que há dentro deste cofre? What´s inside this chest? e que deveria ser respondida por escrito, numa coluna com 10 linhas pontilhadas, e assinada pela pessoa contatada. Havia ainda, no lado direito dessa face, o tradicional espaço em branco para a colocação dos selos, juntamente com o endereço de Vera, a destinatária das respostas. Participaram desse projeto pessoas de vários continentes: Ásia, Europa, Austrália e as três Américas. E muitos dos cartões devolvidos, além das respostas verbais, incluíam desenhos, estampas de carimbos, stickers e grafismos os mais diversos.

Fica evidente que na série Testartes, “o produtor cultural só cria matérias-primas (fragmentos e elementos), deixando aberta aos consumidores a recombinação desses elementos da maneira que eles quiserem. O efeito é quebrar (desconstruir) o poder do autor de impor significados ou de oferecer uma narrativa contínua” (Harvey 1989/1998, p.55). Ou seja, “a ‘aura’ modernista do artista como produtor é dispensada” (p.58).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por que Vera rompeu definitivamente com suas xilogravuras e suas serigrafias para dedicar-se com ênfase à visualidade fotográfica?

Duramente criticada por esse rompimento, à época, Vera optou pelo processo de questionamentos da sua obra. Se por um lado há artistas que, tendo descoberto a fórmula do sucesso, encontram a tranqüilidade no fazer, por outro ângulo a constante inquietação de outros e a busca por novos desafios os impulsionaram a se arriscarem na incerteza de caminhos desconhecidos e até temidos.

A invasão destes desconhecidos universos na experiência existencial de Vera impeliu-a a um certo rompimento com a racionalidade modernista, que transparecia nos seus trabalhos anteriores. Sua trajetória simbólica, plena de dimensões criativas, foi impregnada do “poder criador do imaginário… para pensar a novidade sócio-histórica e criar além do existente” (Ruiz, 2003, p.20), numa época em que muito poucos se aventuravam nos paradigmas transformadores da pós-modernidade emergente no Brasil daquela época.

Acreditamos que será pela tradição hermenêutica que poderemos encontrar algumas respostas para analisar o contexto sócio-histórico destas novas obras, bem como a tradução de seus discursos para buscar interpretações no trabalho de Vera.

De acordo com Thompson (1990/1995), o discurso das formas simbólicas, como as imagens de uma determinada época, é objeto pré-interpretador. Serão o receptor e o observador participante que vão reinterpretar o produto destas formas simbólicas iconográficas, atribuindo-lhes novos significados.

As formas simbólicas, como obras de arte “que parecem atemporais e universais, são caracterizadas por condições de produção, circulação e recepção definidas”, diz Thompson (1990/1995, p.366). Mais adiante refere que é preciso considerar as condições sociais e históricas desta produção. Reafirmando que estas formas estão inseridas em determinada época, Thompson considera que elas possuem um discurso próprio:

Formas simbólicas são produtos contextualizados e algo mais, pois elas são produtos que, em virtude de suas características estruturais, têm capacidade, e têm por objetivo, dizer alguma coisa sobre algo. É esse aspecto adicional e irredutível das formas simbólicas que exige uma maneira diferente de olhar… (p.369)

Com referência aos Testartes de Vera, consideramos que esse foi o propósito da artista: um “novo olhar” sobre a própria obra, possibilitando ao espectador a participação e a oportunidade de decifrar questões comunicacionais propostas pelas imagens, não mais como observador passivo, mas atuando com respostas pessoais às perguntas formuladas em cada lâmina fotográfica.

Harvey (1989/1998) considera que uma das características da pós-modernidade é o refletir consciente do artista sobre a própria obra e é desta forma que podemos interpretar, nos Testartes de Vera, o rompimento definitivo da sua produção modernista para uma passagem definitiva à pós-modernidade, a partir dos anos 70.

Ampliando suas possibilidades conotativas e procurando a participação ativa do espectador, esta nova fase da obra de Vera apresenta-se complexa e oposta aos trabalhos de épocas anteriores: os Testartes não mais possuem a precisão racional, individualista, mas demonstram a imprecisão, o transitório, num processo de comunicação intrigante frente a uma gramática não linear, conduzindo ao pluralismo interpretativo. De fato, Teixeira Coelho refere que no “pós-modernismo” não se coloca a questão da verdade, o que ele aceita é o seu inverso, a pluralidade” (1995, p.114).

Em consonância à questão pós-moderna, Maffesoli, (1995) reflete que “as diversas manifestações das imagens, do imaginário, do simbólico, o jogo das aparências, ocupam, em todos os domínios, um lugar primordial” (p.17) e, em outra obra, o autor argumenta que “para retomarmos a oposição modernidade-pós-modernidade, podemos dizer, que, no âmbito daquela, a história se desenrola, ao passo que, para esta, o acontecimento advém” (2000/2001, p.26).

Thompson (1995) refere que interpretar o discurso de obras simbólicas, como as imagens, “implica um movimento novo de pensamento… por construção criativa de possíveis significados” (p.375). Os Testartes de Vera atestam para o que o autor chama de “reinterpretação”, uma vez que as possibilidades interpretativas são as mais diversas possíveis, desde o aspecto formal, instigando o espectador a muitas interpretações de uma obra já pré-interpretada (mas não privilegiada) pela própria artista. Daí o termo utilizado por Thompson de reinterpretação do discurso formal.

O imaginário perpassa esta nova fase de Vera, impregnado pela cultura da própria artista e do seu environment, isto é, os ecos advindos da Europa e dos Estados Unidos de uma condição pós-moderna ainda latente no Brasil. Interpretar ou reinterpretar este mundo de propostas visuais imaginárias que buscam a comunicação visual é “algo que ultrapassa o indivíduo, que impregna o coletivo, ou, pelo menos, parte do coletivo” diz Maffesoli (2001, p.76) e continua: “O imaginário estabelece vínculo. É cimento social. Logo, se o imaginário liga, une numa mesma atmosfera. Não pode ser individual” (p.76).

Os Testartes de Vera, suas formas simbólicas oriundas deste imaginário estabelecem este vínculo com o espectador participante, que se uma à obra, aceitando o desafio que a artista propõe, opinando, respondendo, integrando-se ao processo de comunicação participativa. A obra deixa de ser uma representação, apenas visual, para se tornar um elemento de ligação, mistura, jogos de interpretação. Deixa de ser obra aurática para se tornar obra vinculada à mídia visual, por meio do processo fotográfico. Este salto da artista para um novo mundo da arte, como meio de comunicação, retrata a inquietação de Vera na procura de novos universos, de outras possibilidades criativas, tornando-a menos presa às convenções culturais vigentes na modernidade para uma visão de maior liberdade na experiência pós-moderna abrangente, buscando sintonias mais próximas do próprio eu junto ao espectador.

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REFERÊNCIAS:
CHAVES BARCELLOS, Vera. Porto Alegre: Espaço NO – Arquivo, 1986.

ECO, Umberto. Obra Aberta, Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. 7a edição, traduzida por Giovani Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 1971.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pésquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. 7a edição traduzida por Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Edição traduzida por Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.

_____. O eterno instante. O retorno do trágico nas sociedades pós-modernas. Edição traduzida por Maria Ludovina Figueiredo. Lisboa: Piaget, 2001.

_____. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS. Porto Alegre: no. 15, agosto, 2001, p.74-81.

RUIZ, Castor M. Bartolomé. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.

TEIXEIRA COELHO, José. Moderno pós-moderno. São Paulo: Iluminuras, 1995.

THOMPSON, John. Ideologia e cultura moderna. Teoria social e crítica na era os meios de comunicação de massa. Edição traduzida por Pedrinho Guareschi. Petrópolis: Vozes, 1995.