Uma das principais referências nos estudos sobre arte contemporânea, o Prof° Dr° Paulo Silveira, escreveu sobre a exposição N.M. 2016, de Patricio Farías, em exibição no Espaço Cultural ESPM – SUL. Na imagem, Patricio Farías com sua obra. (Crédito: Richard John).  Leia a reflexão de Paulo Silveira, aqui.

O trabalho escultórico de Patricio Farías, chileno radicado no Brasil desde início dos anos 1980, parece materializar-se sobre uma postura crítica de desagravo ou chacota a situações coercitivas à pessoa social ou ao indivíduo. Manifesta-se sobretudo através de recursos construtivos, ora revertendo em sofisticadas bricolagens, ora resultando em engenhos refinados que respondem a uma geometria espacial muito pessoal, virtuosamente aplicada às razões do artista. Das grandes esculturas aos objetos de menor formato, incluindo modelos em pequeníssima escala, suas criações têm a eloquência, a desenvoltura da fala expressiva, como um dos seus valores indissociáveis.

O lugar simbólico em que estamos é um ambiente habitado por conformações exatas, precisas, que sugerem já estar concluídas para funções específicas, decididas em seu estágio elaborativo, nos croquis e maquetes. O acaso, se existe, não deixa vestígio de ocorrência, sujeita que está a forma ao rigor hierático quase sarcástico e à impostura monumental. A preocupação com o acabamento é indefectível (em dois sentidos: de finalização do objeto escultórico com maestria artesanal e de apresentação para o espectador com retórica assertiva), como se o respeito a um possível direito da forma fosse soberano nas decisões de trabalho.

O regulamento formal seguido por Farías é matemático e respeitoso à geometria e à mecânica, sem que isso impeça o sonho. Ao contrário, a normatização de sua linguagem plástica prevê a comunicação de conteúdo com dimensões metafóricas, poéticas e críticas. Trata-se da criatividade apaixonada e concentrada de um dedicado geômetra, amante da honestidade das formas e dos significados éticos. Confortável no intervalo emocional que vai de um suave e sutil bom humor até a pilhéria explícita, e daí até as primeiras notas do desencanto, o fazedor permite o lirismo pessoal infiltrar-se nas obras, tantas vezes inseminadas por uma nostalgia vaga, inespecífica. Com um arco produtivo que vai de instrumentos de guerra a irônicos bibelôs, de exoesqueletos alados a citações aos objetos das naturezas-mortas de Morandi, o seu mundo, que nos surpreende como se estranho fosse, é, na realidade, o nosso mundo.

É fácil perceber a sofisticação tranquila presente nas elaborações de Farías, progressivamente autorizada pelo decoro de sua maturidade estética e ética. Estamos diante da segurança protetora das regras clássicas, em espontânea coabitação com os ensinamentos dos conceitualismos. Subjacente à engenhosidade artística, persiste aqui uma poética redentoramente menineira, que nos salva das toxinas sociais e autoriza a manter desperta a emoção para a compreensão das coisas, como as vemos desde uma primeira vez já distante no passado. Sem jamais apelar para invocações de distopias juvenis, o artista concede ao nosso olhar uma oportunidade de remissão, de retomada de um tempo sem fissuras morais, encontrado somente em uma infância arquetípica, como a da nossa imaginação, quando apreciávamos com devoção os nossos brinquedos não eletrônicos, não plásticos, em que no máximo nos feríamos com as farpas de nossas espadas de madeira. E talvez muitos de nós gostássemos mais do raciocínio e da instrumentalização para o feitio da espada e da dinâmica no controle do seu movimento no ar do que da própria luta. E alguns poucos, por certo, dominávamos com paixão a habilidade de construção das peças de nossa felicidade: fazer ioiôs, piões, bilboquês, carrinhos de rolimã, casinhas para pássaros. Faríamos asas se pudéssemos.

As serrações, as marteladas, os lixamentos, o som e o cheiro das ferramentas e do material em uso permanecem no nosso repertório afetivo, abrigados na memória. Resta-nos a percepção de um silêncio comovido, que homenageia o estar no mundo, silêncio de templo, envolvendo tanto as pequenas montagens tridimensionais como as grandes obras que testemunham o artista como – por que não? – mais um aplicado e notável marceneiro do nosso imaginário. O ruído produzido na oficina de Geppetto pertenceu apenas aos seus ouvidos. Para nós, visitantes, resta o engenho final, o petrecho cênico, o objeto bem-sucedido e impecável. A morfologia requintada, a sintaxe pragmática e a solenidade dúbia trabalharão para reunir, com a suavidade das nostalgias, o compromisso estético entre fazedor e espectador.