Série Cadernos de Referência

 

Doação prematura de obras do artista Hudinilson Jr. , falecido no ano passado em São Paulo, antes de seu levantamento e catalogação,  provoca reunião que decide sobre a formação de uma associação que deverá cuidar do futuro das obras  do artista.  

Alguns meses antes de sua morte, em uma carta de próprio punho, o artista doava toda sua obra e coleção para a FVCB – Fundação Vera Chaves Barcellos.

 

Carta de próprio punho, cuja cópia xerocada foi distribuída a vários amigos por Hudinilson Jr., poucos meses antes de sua morte, doa sua obra e sua coleção de arte para a Fundação Vera Chaves Barcellos.

No dia 22 de janeiro de 2013, antes de submeter a uma cirurgia de prótese de quadril, o artista paulistano Hudinilson Urbano Junior, até então marginalizado por boa parte do meio artístico de São Paulo, deixou por escrito de próprio punho, uma carta cujo conteúdo segue abaixo:

 

São Paulo, 22 de janeiro de 2013.

Dia da operação (finalmente) do fémur esquerdo candidato a “Ciborg”.

Um sonho, ansiedade eterna e característica.

Uma operação é como um “vôo de avião”. Mas como não estamos livres de uma triste ocorrência, fica registrado e autorizado de próprio punho, a doação de tudo, pele, ossos, rins, etc. O que der para aproveitar e auxiliar a outros.

O que estiver “detonado”(fígado e pulmão c/ certeza), doa-se para ciência, e, o que sobrar (se sobrar), como último desejo/ordem, deve ser cremado e as cinzas jogadas sobre o rio Tietê, sendo esta minha última contribuição p/ a recuperação deste símbolo paulistano e assim sendo, eu paulista/paulistano/urbano fazer uma homenagem ao aniversário da minha amada cidade (459).

Bem, as obras e todo meu acervo já está mais que acertado que será doado a e “curado” pela “Fundação Vera Chaves Barcellos”, em Viamão, Rio Grande do Sul, Brasil.

Sendo assim, esperando e na certeza do respeito póstumo de parentes, colegas e amigos, me despeço com saudades.

 

Hudinilson Jr.

Hudinilson Urbano Junior

Obs.: Atitude inútil, pois nada com certeza irá acontecer, mas como ñ passamos de um “ameba”, pelo sim e pelo não!!!!!

Esta carta confirma o que inúmeras vezes o artista havia manifestado tanto para a presidente da Fundação, sua pessoal amiga desde finais dos anos 1970, Vera Chaves Barcellos, como a muitos de seus amigos em São Paulo, e também à mãe do artista, a Sra. Cida Urbano com quem o artista deixou o original da carta.

Hudinilson Jr. não morreu na cirurgia no mês de janeiro de 2013, mas faleceu em seu apartamento em São Paulo em 28 de agosto do mesmo ano.

A família, principalmente representada pela mãe do artista, manifestou que tinha conhecimento da vontade do filho e marcou logo após a morte um encontro com Vera Chaves Barcellos, que através dos anos promoveu, divulgou e adquiriu obras do mesmo em diferentes ocasiões, e que preside a Fundação referida na carta-testamento deixada por este.

Nesse primeiro encontro com os pais do artista em São Paulo, ficou acertada entre eles e a FVCB, a elaboração de um documento por parte desta, efetivando os termos da doação das obras para a entidade.

Mas, em poucas semanas, entre a elaboração do documento e a entrega deste para família para análise, dias antes de uma homenagem realizada em memória do artista no Centro Cultural São Paulo, muitas forças e interesses opostos já haviam se interposto para que a doação das obras à FVCB não acontecesse. As coisas tomaram outro rumo, que seria a formação de uma associação ou instituto para cuidar da obra de Hudinilson Jr., com sede em São Paulo.  Após ser feita a listagem completa e catalogação das obras, um conselho da associação a ser formada, decidiria a futura destinação das obras a entidades culturais idôneas, tanto brasileiras como internacionais, inclusive uma parte, futuramente, deveria vir para a FVCB.

Hudinilson  fôra durante décadas marginalizado por boa parte do meio artístico paulistano, por sua problemática personalidade, por ser alcoólatra desde muito jovem, e só os verdadeiros amigos podiam  aceitá-lo, assim como apreciar sua inteligência, otimismo, e seu fino humor.  Com sua morte, no entanto, livres do incômodo que seria conviver com sua difícil pessoa, surgiram imediatamente do meio artístico paulistano, pessoas e entidades culturais com forte interesse pela sua obra.

Esta, marcada por acentuado conteúdo crítico à sociedade contemporânea mesclada a um forte acento homoerótico, foi concretizada, além de grafites, obras gráficas, pinturas e objetos, em mais de cem álbuns de recortes, os quais o artista denominou Cadernos de Referência , agendas onde o artista realizou uma espécie de diário pessoal e também de seu entorno social e cultural, através de colagens de imagens e textos extraídos da mídia.

De uma incomodidade, a obra de Hudinilsosn Jr. após sua morte passou a ser objeto de desejo de muitos.

Exceção feita à galerista Jaqueline Martins que se interessou há cerca de um par de anos pela obra do artista e já começara a introduzí-la no mercado aos poucos, ou entidades como o Centro Cultural São Paulo, onde estão alguns entre os que foram seus melhores amigos, e onde sua obra sempre foi bem-vinda e divulgada e mesmo o MAC-USP,  donatário recente das  obras acima referidas,  mas que já possuía obras do artista em sua coleção;  e também, fora de São Paulo, no Rio Grande do Sul, a Fundação Vera Chaves Barcellos que realizou uma mostra individual do artista em sua sede em Porto Alegre, em 2008.  E anos antes, em 2000, obra do artista foi inserida por Vera Chaves Barcellos em sua instalação Visitant Genet, exposta no Museu d’Art de Girona, Espanha, quando, certamente pela primeira vez foi mostrada fora do Brasil.

Vale a pena ser citado que em 1979 o Espaço N.O. de Porto Alegre  (1979-1982) realizou uma mostra do Grupo 3Nós3, e  posteriormente uma mostra individual de Hudinilson Jr.

Esses fatos comprovam que a relação do artista com o meio artístico de Porto Alegre e com Vera Chaves Barcellos data de mais de 30 anos.

Nesta segunda-feira, dia 3 de fevereiro de 2014, alertados pela matéria publicada no Estadão em 17 de janeiro, que notícia a prematura doação de cerca de 30 obras do artista ao MAC-USP pela família, mesmo antes de seu levantamento e catalogação, o grupo de amigos do artista, prováveis futuros membros de um conselho deliberativo dessa associação ou instituto em formação, apreensivos pela dispersão das obras de forma aleatória, se reúne com a mãe de Hudinilson Jr., representante da família, para a delicada tarefa de conciliar interesses culturais, afetivos e mercadológicos num consenso difícil de atingir.

Esperemos para ver.

 

Fundação Vera Chaves Barcellos.

3 de fevereiro de 2014.