A artista visual Claudia Paim (Porto Alegre, 1961) integra a  exposição , em cartaz na Fundação Vera Chaves Barcellos.  Devastação, obra da coleção da artista, pode ser visto na mostra, que segue em exibição até 16 de dezembro.  Em entrevista, a artista conta um pouco do processo criativo que originou o trabalho.

“ […] eu queria uma coisa aguda, uma coisa certeira, mas sem estridência”.

 

É desta forma que a artista Claudia Paim se refere ao impactante vídeo Devastação, pertencente a coleção particular da artista, e atualmente em exibição na Sala dos Pomares, na mostra .

No vídeo, através de imagens captadas por Jaqueline Lessa, vemos a artista realizar uma performance, na qual, de costas para a câmera, inicia um processo delicado e controlado de retirar os cabelos que se soltam de sua cabeça, efeito colateral do tratamento quimioterápico realizado por Claudia desde 2010, quando ela recebeu o diagnóstico de câncer.

Claudia conta que queria criar uma imagem do corpo que mesmo adoecido segue com forte pulsão criativa, apresentando “uma imagem do corpo doente, mas sem o desespero. É o que o corpo doente ainda pode produzir”. A obra demonstra, assim, de forma crua mas sutil, “o corpo devastado mesmo, por efeitos de uma quimioterapia, por efeitos de uma doença”.

O trabalho confronta o espectador a temas tabus como a doença e a morte: “Eu queria uma imagem muito delicada, muito silenciosa, mas intensa ao tratar de um tema que não é fácil. Ao tratar de um tema que é até tabu na nossa cultura: a doença e morte não são temas tratados, assim, com muita frequência, no mundo ocidental. De certo modo, tanto a doença como a morte, elas foram higienizadas do nosso cotidiano. Hoje os doentes vão pro hospital, a morte ocorre longe do ambiente doméstico também. Então, era tratar disso mas de uma forma muito delicada, bonita mesmo, sabe, muito direta, incisiva, mas delicada. Por isso que eu escolhi tirar os cabelos de uma forma muito controlada. Não é uma mulher arrancando os cabelos, é uma outra coisa, é um corpo que está secretando partes de si mesmo. De certa forma, é isso. Então por isso essa escolha do gesto lento, por isso a escolha do silêncio e por isso a escolha de não ter cortes, não tem movimentos de câmera”.

Confira a entrevista na íntegra:

Comunicação FVCB: Devastação é sem dúvida um trabalho agudo. Como se deu a concepção criativa do trabalho e como tu o vês no conjunto da tua obra? O título agudo e certeiro, gostaria que falasses sobre ele …

Claudia Paim: “Eu tenho câncer desde 2010. A primeira vez que eu fui diagnosticada, em 2010, quando eu comecei a fazer a quimioterapia que eu comecei a perder os cabelos, eu acabei produzindo uma foto. Uma fotografia que eu uso hoje, que é uma imagem muito interessante, que tem um enquadramento muito parecido com o do vídeo DEVASTAÇÃO: é um plano fechado, eu tô de costas, e eu tinha começado a perder os cabelos. Essa foto é em preto e branco, quem clicou foi a Jana Paim e ela é uma imagem que hoje eu uso como cartão de visitas, no verso do meu cartão de visitas.

Bem, em 2016, metástases, volta a quimioterapia e se instala a pergunta: e agora, o que este corpo ainda produz? Esse corpo ainda vai ter força para produzir? O que este corpo pode produzir? Eu tava na época participando de uma residência na Galeria Península, em Porto Alegre, e no dia que eu fui apresentar uma performance, foi o dia que comecei a perder o cabelo. Eu comecei então a tirar uns punhados de cabelo e a entregar para algumas pessoas e eu vi que isso era muito potente, as pessoas ficavam muito impressionadas com isso.

Então, eu tive a ideia “isso vai virar um vídeo”. Então eu tive essa ideia de fazer esse vídeo com esse mesmo enquadramento que eu tinha utilizado na foto. Era um vídeo que eu não queria que as pessoas vissem o meu rosto, eu não queria passar nenhuma noção de dor; eu não queria meu rosto desvelado, eu queria só esse gesto das mãos, uma coisa muito silenciosa, essa é uma opção do vídeo, não ter áudio, só as mãos que iam tirando aquele cabelo que simplesmente iam se desprendendo de mim. E foi isso, foi assim que nasceu esse vídeo.

A questão do título, eu acho que ele é um título muito direto mesmo. Ele é bem o que eu sentia naquele momento, e o que eu acho que essa imagem passava, o corpo devastado mesmo, por efeitos de uma quimioterapia, por efeitos de uma doença.

Eu gosto muito da imagem da fotoperformance de 2010 e gosto muito desse vídeo, acho que eles são importantes, são trabalhos que eu me sinto muito representada, pelo menos por enquanto, acho que são trabalhos que eu curti ter feito, eu gostei do resultado. Nem sempre isso acontece, mas dessa vez (dessas duas vezes) eu acho que são bons trabalhos.

Acho que é importante também dizer que para esse vídeo a Jackeline Lessa, que é uma artista bem jovem, tem um olhar primoroso, uma pessoa extremamente caprichosa na produção da imagem, foi fundamental. Isso que eu tava de costas e ela que foi afinando. Eu passei pra ela a ideia, mas ela que foi buscando, luz e tudo, para a gente conseguir chegar nesse resultado”.

Comunicação FVCB: Qual tua “expectativa” junto aos espectadores: como imagina ou desejou no momento de criação que teu trabalho fosse recebido?

“Eu não penso muito nisso, eu não dou conta muito disso. Eu penso no que eu quero produzir, eu queria uma imagem de algo que era … eu queria uma imagem muito delicada, muito silenciosa, mas intensa ao tratar de um tema que não é fácil. Ao tratar de um tema que é até tabu na nossa cultura: a doença e morte não são temas tratados, assim, com muita frequência, no mundo ocidental. De certo modo tanto a doença como a morte, elas foram higienizadas do nosso cotidiano. Hoje os doentes vão pro hospital, a morte ocorre longe do ambiente doméstico também. Então, era tratar disso, mas de uma forma muito delicada, bonita mesmo, sabe, muito delicada, muito direta, incisiva, mas delicada. Por isso que eu escolhi tirar os cabelos de uma forma muito controlada. Não é uma mulher arrancando os cabelos, é uma outra coisa, é um corpo que tá secretando partes de si mesmo. De certa forma, é isso. Então por isso essa escolha do gesto lento, por isso a escolha do silêncio e por isso a escolha de não ter cortes, não tem movimentos de câmera.

[…] é um corpo doente, mas que não quer parar de produzir. E é isso que ele conseguiu produzir. De certa forma,se autorizar algo que acontece com a doença, com o tratamento, algo que acontece com esse corpo é me autorizar a usar isso e a produzir uma imagem e a produzir… eu não sei o que eu queria produzir. Eu queria produzir exatamente isso: um vídeo delicado, mas nem por isso dotado de densidade e nem por isso desfalcado de sentidos.

É isso. Uma imagem do corpo doente. Mas sem o desespero. É o que o corpo doente ainda pode produzir e acho que o título, puta, era isso que eu sentia: vou ter que voltar para quimioterapia. Quimioterapia tem um efeito devastador, então é isso. O efeito de devastação sobre o corpo, mas sem desespero, sem drama, simplesmente, é isso aí. É isso que acontece: tá aqui, e eu posso fazer algo que toque o outro, que atravesse o outro, mas de uma forma que não seja bombástica nem planfetária, eu queria uma coisa aguda, uma coisa certeira, mas sem estridência”.

Sobre a artista

Claudia Paim (​1961, Porto Alegre – RS, Brasil) é artista visual com produção em performance, vídeo e fotografia. Claudia é doutora em Artes Visuais pela UFRGS e atua como docente na graduação e pós-graduação da FURG.

Saiba mais: www.claudiapaim.site