de Alexandre Santos*

A exposição A Imagem Lúcida,com curadoria de Ana Albani de Carvalho e Neiva Bohns, é uma excelente oportunidade de perceber as potencialidades múltiplas da imagem na arte contemporânea, reunindo obras de artistas de diferentes gerações, pertencentes ao acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos.

Embora nem todos os onze artistas participantes de Imagem Lúcida lidem com a fotografia tradicional, é no campo da imagem fotográfica que gravitam, direta ou indiretamente, as suas pesquisas artísticas. O instigante título da mostra serve como provocação, pois a luz é o elemento primordial da especificidade do signo fotográfico, presente na própria raiz etimológica da palavra fotografia, que quer dizer escrita da luz. Entretanto, mais do que remeter à impressão de uma escrita objetiva do fenômeno luminoso sobre uma superfície sensível, a exposição em questão discute prioritariamente a lucidez que acompanha os usos da imagem fotográfica no cenário contemporâneo da arte, assim como os desdobramentos críticos de sua verdade especular. É justamente deste tensionamento visceral entre o real e a sua representação que se nutre um dos pontos centrais do debate sobre a presença da fotografia na arte recente.

Fazendo alusão aos usos científicos e pseudocientíficos da fotografia oitocentista, Mário Ramiro (1957) recupera a realidade invisível através da schlieren photographie, técnica desenvolvida pelo alemão August Toepler em 1894. Em seu Champ de Force (1997), as vibrações de calor que se desprendem dos corpos, geram, via imagem técnica, a potencialização dos nossos sentidos, ao mesmo tempo em que buscam expandir a idéia de corporalidade. Já Carla Borba (1978), ao contrário, se interessa pelo repertório das aparências fotográficas inscritas na cultura, reafirmando e negando o papel da fotografia nos ritos da vida privada. Em 17 Kg/1,03m – 65 kg/1,75m (2000), Borba repete de modo objetivo o gesto, a ambientação, os figurinos e o enquadramento de seu retrato infantil. Ao mimetizar artificialmente uma realidade irrepetível, a artista aproxima-se da performance fotográfica, cotejando temporalidades diversas que oscilam entre a familiaridade e o estranhamento.

Por outro lado, a catalã Begoña Egurbide (1958) lida com a questão da memória e do tempo escorregadio na obra Princesas (2003), através de uma seqüência de imagens referentes à infância na qual meninas são fotografadas tanto em situações espontâneas quanto submetidas a gestos pré-estabelecidos. O interessante do trabalho está no recurso ao sistema lenticular de fotografia digital que, através de um programa de computador, cria camadas superpostas de imagens, somente perceptíveis com o movimento do espectador diante da obra. Se a cor e o grande formato remetem à pintura, a impressão de movimento trazida pela sobreposição das imagens faz alusão ao tempo seqüencial do cinema, afirmando a realidade como algo que sempre nos escapa.

Os recursos tecnológicos da geração de imagens via programas de computador também estão presentes como ferramentas de Joan Fontcuberta (1955) em Orogenesis, Mano (2003), imagem realizada a partir da leitura mecânica da fotografia de sua mão por um programa de computador. Apesar da aparente objetividade do processo de obtenção, esta imagem assemelha-se ao universo subjetivo das paisagens românticas, cuja origem era creditada à expressão do mundo interior dos artistas. De certo modo, Fontcuberta está pesquisando em sua série Orogenesis, que significa criando montanhas, uma espécie de mergulho na escuridão tecnológica onde a objetividade da imagem fotográfica e dos recursos do computador são estratégias para alcançar a subjetividade da pintura.

É também de uma paisagem subjetiva que nos fala Nick Rands (1955), há algum tempo envolvido em um paciente trabalho relacionado à vivência do espaço como matriz geradora de formas artísticas. Em West Solent Coastline Rhythm (2004), o artista nos apresenta a sobreposição de fotografias de um mesmo percurso, percorrido em dias diferentes e durante um tempo determinado. Resultantes de registros rítmicos, rigorosamente controlados, estas imagens nos levam a pensar sobre o caráter metonímico da fotografia enquanto recorte da realidade que nos instiga, em seu silêncio fragmentário, a indagar sobre as reticências da experiência andarilha do seu autor.

Vera Chaves Barcellos (1938), cuja trajetória tem familiaridade com a fotografia desde meados da década de 1970, realiza com a obra Cão Veneziano (2004) uma provocação sobre as possibilidades do banal quando inscrito na singularidade da imagem fotográfica. Trata-se do registro de imagens de um cão, submetido aos limites do acento de um trem (?) pela sua suposta dona. Não é a primeira vez que Vera trabalha com a apropriação clandestina de imagens, aspecto que vem se desenvolvendo em seu trabalho sob diversas facetas. A ironia combinada à precisão formal são elementos bastante evidenciados nas inquietações da artista, atenta aos limites entre o real e a sua ficcionalização via imagem fotográfica.

Cláudio Goulart (1954–2005), por sua vez, convida-nos a pensar sobre a cegueira e sobre o olhar em Wishfull Thinking (1998), uma seqüência de sete auto-retratos idênticos e de olhos vendados. A única diferença entre as imagens está no recurso à cor das faixas que vedam o olhar do fotografado, remetendo ao sugestivo título da obra, expressão inglesa que significa fé naquilo que se deseja ser a verdade. Se a fotografia não é o real e se o olhar é construção, estamos sempre, contraditoriamente, no campo do artifício e de uma certa cegueira que constroem a nossa percepção da verdade. Em termos formais, a obra de Goulart dialoga com o trabalho de Carlos Pasquetti (1948), pois em ambos há a combinação da serialização fotográfica com o efeito de cores. Entretanto, nos Energiczadores de Parede (1996) de Pasquetti temos polaroides que efetuam o registro de objetos efêmeros feitos pelo artista, os quais ganham uma força significante autônoma ao se constituírem imagens fotográficas bidimensionais.

Mara Alvares (1950) está numa posição fronteiriça, semelhante a que vamos encontrar em Mário Röhnelt (1950). Em Da Série Pinturas Urgentes: War (2003) Alvares nos apresenta uma provocativa fotografia que quer invadir o campo da pintura tal como uma natureza morta. Mas, ao mesmo tempo, esta imagem nos remete a um still de filme B, carregado da dramaticidade de uma tragédia doméstica. Mário Rohnelt, por sua vez, gera imagens de imagens imperceptíveis, valorizando o mundo visível como uma espécie de sagração do cotidiano através da operação artística de cuidadoso enquadramento e incidência da luz em suas fotografias. A busca da cor pictórica na fotografia é o caminho inverso de sua prática artística ligada ao uso do signo fotográfico como instrumento para o seu desenho e pintura há muitos anos.

Se Alvares e Röhnelt buscam o caminho da consagração da obra artística nos objetos do cotidiano, Ethienne Nachtigall (1971), por outro lado, desconstrói esse olhar consagrador em suas fotografias diretamente voltadas para o registro de obras de arte. Porém, enquanto os dois primeiros artistas afirmam o poder da construção de sentido pela imagem fotográfica, Nachtigall usa a mesma ferramenta para negá-lo.

Todos os fatores acima apontados e ainda muitos outros a serem descobertos pelos espectadores tornam a despretensiosa exposição A Imagem Lúcida um sinalizador do processo intelectual envolvido tanto na produção quanto na freqüentação da obra de arte ligada à fotografia na perspectiva da arte contemporânea.

*Historiador e Crítico de Arte, Doutor em Historia da Arte pela UFRGS, Professor da UNISINOS e ESPM.