CORPO FRAGMENTADO, FRAGMENTOS DO CORPO: ASPECTOS DA OBRA DE VERA CHAVES (BRASIL)
Icleia Borsa Cattani
El presente texto analiza los distintos abordajes Del cuerpo humano que la artista Vera Chaves hace em sus obras. Vera Chaves, brasileña, vive en Porto Alegre, Brasil, y Barcelona, España. Su obra artística es múltipla, tanto en relación a los médios técnicos empleados, como al de las proprias temáticas; su hilo conductor es la investigación constante de las conexiones entre los procesos intelectuales de la percepción y la obra misma. En la obra resultante, las representaciones del cuerpo humano son recurrentes a lo largo del tiempo, y cambian su connotación a cada retomada; pero la fragmentación y/o evocación del cuerpo por medio de signos o indícios se mantiene como una constante significativa. La artista solicita aí la memoria del espectador para reconstruirlo; en este proceso de desconstrucción/reconstrucción, se hacen presentes Eros, como princípio de vida, y Tanathos, función de muerte.
As representações do corpo humano, no século XX perdem a unidade; o corpo deforma-se, multiplica-se, fragmenta-se e, assim, abre-se a múltiplos significados. No Brasil, ao longo do século, as tendências internacionais tiveram ecos na produção artística local; e o corpo humano esteve sempre presente, talvez mais ainda do que em outros países. Nas últimas décadas, em alguns centros brasileiros, sistemas de signos marcados por estilemas da chamada pós-modernidade eclodiram com muita força; e em conseqüência, a representação do corpo humano ganhou nova legitimação.
Veremos aqui, aspectos da obra de uma artista que, ao longo de três décadas, sensível aos movimentos internacionais, manteve entretanto uma extrema coerência em sua produção: em vários momentos, esta aborda o corpo humano, quase sempre, fragmentando-o. Tentaremos ver a lógica deste procedimento.
Vera Chaves é brasileira e reside entre Porto Alegre e Barcelona; ela desenvolve seu trabalho artístico desde a década de 60 e possui reconhecimento internacional, tendo participado, entre outras exposições significativas, da Bienal de Veneza (1976), da Bienal de Cuba (1984) e da Bienal de São Paulo (1967, 1977, 1983, 1989) além de várias exposições individuais no Brasil e no exterior.
Sua obra é múltipla em termos de meios técnicos e de temáticas; seu fio condutor é a investigação constante sobre as ligações entre processos intelectivos de percepção e a obra plástica.
Enfocaremos aqui alguns aspectos de seu trabalho, ligados às representações do corpo humano. Veremos que essas representações são recorrentes ao longo do tempo, e mudam de conotação em cada retomada. Uma constante, porém, é a fragmentação do corpo e/ou sua evocação através de signos, ou indícios.
FRAGMENTOS
Pode o fragmento revelar o todo? Na obra PER(SO)NAS, série de fotografias de 1981-1983, Vera Chaves focaliza apenas as pernas das pessoas. Não quaisquer pernas: pernas femininas. Pernas femininas classe média. Sexo e classe social.
“A idéia de pernas femininas surgiu do próprio trabalho, pois as pernas de mulheres, pelo menos no mundo ocidental, são mais descobertas e reveladoras de aspectos como idade, “status” social, gosto no vestir, além de traços psicológicos transmitidos pelas atitudes específicas a cada personalidade.” 1
Pernas à espera: do ônibus, do leite, talvez da vida. Os personagens estão sempre de pé e de costas, inconscientes do olhar e da objetiva. São pernas anônimas, embora reveladoras (e reveladas). Trata-se do oposto da pose, do retrato, da pompa e circunstância. É um flagrante circunstancial. 2
PER(SO)NAS. O título da série é também fragmentado. PERSONAS – PERNAS. Duplo sentido, no qual o fragmento (SO) pode revelar o todo, mas no qual, também, sua ausência pode criar um outro sentido. PER(SO)NAS – PERNAS. O sentido evidente das imagens e o seu sentido oculto. Convém lembrar que, em seu sentido primitivo, de origem etrusca, persona designava a máscara de teatro: rosto que se sobrepunha a outro rosto, como um duplo.
Fragmentos de corpos. Nem mesmo desmembrados: apenas parcialmente aprisionados pela objetiva.
Imagens que são fragmentos: a proposta de Vera Chaves é que as fotos sejam expostas, não à altura do olhar como impõe a tradição humanística, mas ao nível das pernas reais. O espectador não encontrará a imagem “naturalmente”, mas deverá baixar os olhos para vê-la. Por quê imagens-fragmento? Porque, por sua posição, situam-se como fragmentos de imagens que começassem à altura do olhar… Porque incitam à reconstituição do corpo do personagem (e, conseqüentemente, à reconstituição da imagem). São fragmentos de uma imagem potencial.
Trata-se de uma subversão do retrato como imagem única, insubstituível, da persona. Subversão também da tradição humanística: o quadro com um sentido (pretensamente) explícito e unívoco. Aqui, pelo contrário, as imagens apresentam-se como “charadas que nos pedem um exercício contínuo de decifração para que pelo fragmento se recomponha a realidade maior que a tudo costura e envolve”.3 Charadas: decifra-me ou te devoro. O velho mito da Esfinge revisitado. A arte colocada, não como solução, mas como problema.
Subversão da imagem do corpo – a unidade, a totalidade, substituídas pelo fragmento (que implica, sempre, em divisão, atomização).
O fragmento revela a visão mais primitiva e inconsciente que temos de nossos próprios corpos e do corpo do outro (nossa boca e o seio de nossas mães não formam uma totalidade, constituída de dois fragmentos?).
O fragmento da imagem do corpo, tal como é proposto em PER(SO)NAS, desvela a fragilidade da pretensão à totalidade.
JOGOS
Em muitos de seus trabalhos, Vera Chaves procede como para a construção de um puzzle4 , ou “Quebra-cabeça”5 . Mas a construção de tais jogos passa pela desconstrução da imagem de partida: da totalidade faz-se fragmentos que, decifrados, permitirão reconstruir a imagem. Com uma sutil diferença: a imagem reconstruída guardará para sempre os cortes dos fragmentos, como cicatrizes. Sua “unidade” será a reconstituição de seus pedaços.
Esse procedimento está presente há muito tempo na produção de Vera Chaves. Já em 1975, executou um trabalho em fotografia no qual aparecem fragmentos de um automóvel6 . Sua origem talvez seja ainda mais antiga, estando presente, em embrião, já na série dos “Permutáveis-Combináveis” de 1970. Só que, como o próprio nome indica, o jogo dava-se naquele momento com imagens inteiras que podiam ser permutadas e propiciar outras combinações de elementos. Talvez sejam etapas de um processo, assim como a criança passa dos jogos de cubos aos quebra-cabeças, que exigem um nível mais elaborado de percepção.
“Atenção, processo seletivo do perceber” 7, coloca mais uma vez a questão da percepção. Percepção do corpo da imagem – imagem fragmentada – puzzle por armar. Vera partiu de um processo no qual os fragmentos da imagem foram, primeiramente, trabalhados com fotografia, xerox e textos, para chegar finalmente ao desenho que na sua opinião já é, em si, “uma forma seletiva de perceber”8 . A respeito de sua motivação para esse trabalho, diz que partiu da frase de John Cage, “o mundo muda em função do lugar que fixamos nossa atenção”, e que esse trabalho consiste em focalizar diferentes pontos de uma mesma imagem.9 Dentro do mesmo princípio, elabora a série “Fragmentos de multidão” e o trabalho “Quebra-cabeça”10 . Sobre este último, escreveu Ana Hauser Brody:
“Pelos princípios da ótica ocidental moderna, o olho humano, antes de perceber a totalidade da imagem, inicia sua pesquisa visual de um ponto fixo. No entanto, neste trabalho, há uma modificação propositada desse princípio, pela valorização da parte ou pelo “corte fotográfico” que, pela sua distribuição em forma de quebra-cabeça, sugere a percepção do detalhe. O espectador, pela identificação das partes, poderá eventualmente reconstituir o todo.”11
Os detalhes tornam-se obras autônomas, chegando a resultados que poderiam ser, muitas vezes, considerados “abstratos” (dentro da acepção corrente da palavra, ou seja, figura não-identificável). O corpo da imagem não só é cortado em pedaços, como também esses pedaços são ampliados e tornam-se relativamente autônomos. 12
Aqui, mais do que nunca, o corpo humano é fragmentado. No puzzle, muitas vezes, só indícios permitem identificar algumas de suas partes: olho, nariz, pedaço de um braço… Indícios, muitas vezes, muito frágeis e ambíguos: será aquilo o alto de um crânio, teremos acolá realmente um pedaço de pescoço, emoldurado por um colarinho entreaberto? Ambigüidade geradora de angústia, na medida em que sentimos a necessidade de reconhecer, identificar nossos próprios corpos, e os dos outros. Como estabelecer os limites entre o dentro e o fora, entre o corpo e o não corpo, entre o meu corpo e o do outro, se nesse puzzle demoníaco os fragmentos encontram-se desarticulados, peças soltas e monstruosamente autônomas?
PAISAGENS
“Epidermic Scapes”13 : paisagens epidérmicas. Fragmentos do corpo humano, apresentados como paisagens. Jogo com as palavras, jogo com as imagens. Existe uma seleção de elementos, levando a uma leitura ambígua: o que é intrinsecamente nosso (o corpo) visto como exterior a nós (a paisagem). Modificação de ponto de vista que faz com que se reflita sobre a nossa relação com o mundo. O que é nosso pode deixar de sê-lo? Na morte, o que é de nosso corpo? Talvez, paisagem sem dono…
O trabalho também evidencia a percepção de nossa superfície (a epiderme) tal como a percebemos de dentro, por nossos processos inconscientes – o corpo fragmentado, desarticulado, o privilégio de algumas de suas partes, em detrimento de outras. O nosso corpo e o corpo do outro: onde estão os limites? Dentro/fora: questão recorrente no trabalho de Vera Chaves.
A pele como limite do corpo, separando o interior do exterior. O corpo como registro da passagem do tempo – as paisagens do corpo possuem acidentes de percurso, é necessário passar por eles, percorrê-los com o olhar ou com as mãos… Viagem espaço-temporal. As paisagens do corpo lembram mapas topográficos: depressões, saliências, limites…
Como técnica, temos aqui a fotografia. Investida de sentido, pela escolha do motivo, pela amplificação do detalhe. Há uma recontextualização da foto, do corpo, da paisagem. E do nosso olhar, sobre o nosso corpo (e o do outro).
“Epidermic Scapes” é um trabalho de superfície, ao nível da epiderme, numa fuga de todo o subjetivismo e qualquer problemática interna. Propõe a documentação para sempre renovável dos grafismos do corpo.” 14
Não se trata, aqui, de uma forma de exorcismo? O corpo como documento é o contrário do corpo-paixão. Corpo-documento é aquele dos tratados de anatomia, das mesas de dissecação: corpo morto.
O corpo como superfície – mas, na arte, a superfície do suporte não é o lugar privilegiado da projeção do imaginário? Referindo-se a outro trabalho seu 15, Vera cita o texto de Leonardo da Vinci:
“Não deixarei de incluir nestes preceitos um novo método de especulação…
É o de olhar muros salpicados de manchas, ou de pedras de tonalidades variadas. Se imaginas um lugar qualquer, poderás ver ali semelhanças com paisagens diversas, ornadas de montanhas, rios, rochas (…) Ocorre com tais paredes e mesclas como com os sons de sinos em cujos toques encontrarás cada palavra e cada nome que imagines.”16
A proposta de “entrada no interno, no mundo inconsciente e das projeções psicológicas” a que Vera se refere em relação aos trabalhos “Simetrias” 17 e “Muros” parece-nos totalmente adequada, também, a “Epidermic Scapes”.
Paisagens epidérmicas. Corpo-paisagem: corpo-paixão e corpo-morte. Eros e Tanatos.
INDÍCIOS
No trabalho intitulado “Memorial III: mulheres da vida”, de 1992, Vera trabalha com os nomes femininos, colocando-os em placas de mármore, como carneiras de cemitérios, e em etiquetas de papel (como as das mercadorias, ou as que se colocam nos tornozelos dos cadáveres nos necrotérios, para identificá-los). As placas de mármore são presas à parede; as etiquetas, comprimidas em caixas hexagonais, com tampos de vidro.
Os nomes constituem indícios dos corpos: são fragmentos da individuação, são elementos carregados de sentido.
O que significa encontrar seu próprio nome numa lápide? Ou o nome da mãe/mulher/amante/filha/irmã?
Por onde pode se dar a identificação? Ou ela não é desejada (desejável)?
O choque de encontrar, entre as lápides com nomes, O nome – aquele carregado de conotações afetivas – que sentimento deve provocar?
E o nome na etiqueta? Prova que pouco valemos, que nos reduzimos a um nome, ou a um número, ou a uma ficha catalográfica?
A reiteração reforça a sensação de mal-estar: são 180 placas de mármore, 1200 etiquetas. A reiteração, a série, são procedimentos constantes na obra da artista. Neste caso, como no da exposição “Ornaments i altres coses”, apresentado em Barcelona em 1990, a reiteração da imagem leva à criação de um novo conjunto composto pela totalidade das imagens expostas. No “Memorial III”, as placas de mármore criam um conjunto uno, e é ele que causa impacto; “cemitério” de mulheres, sepultamento do feminino. Simultaneamente, canteiros de flores (obtidos por fotografias manipuladas), associam o feminino à vida. Voltam as questões, presentes em “Epidermic Scapes”, de Eros, princípio de vida, e de Tanatos, pulsão de morte.
CORPO PERCEBIDO, CORPO DADO A PERCEBER (OU A ADIVINHAR)
Em sua obra, Vera Chaves coloca em muitas séries, às quais pertencem as mencionadas no presente texto, as questões do corpo fragmentado como o corpo percebido, por ela própria e por todos nós, em relação aos nossos próprios corpos; e o corpo dado a perceber, ou a adivinhar, como aquele que resulta dos fragmentos, ou dos indícios revelados. Dicotomia dinâmica, que instaura uma dialética entre o corpo social, a persona, e o corpo íntimo, como sua lógica própria. Dialética que atinge o espectador e o faz refletir sobre seu próprio corpo, seus papéis, funções e imagens; que o faz sentir a memória, simultaneamente, como jogo intelectual e mergulho no inconsciente. A obra de Vera Chaves cumpre seu papel de obejto estético, que provoca reações – estesia em oposição ao corpo e mente anestesiados que deseja a cultura de massas.
1 CHAVES, Vera. Depoimento de dezembro de 1983. IN: VIGIANO, Cris et alii. Vera Chaves Barcellos. Porto Alegre, Ed. Espaço NO-Arquivo, 1986, p.23.
2 É o oposto de “Keep Smiling”, série de fotos sobre o ato de sorrir para o fotógrafo, que a artista realizou em 1978.
3 PONTUAL, Roberto. “Imagem: alma do corpo, corpo da alma”. IN: Corpo e Alma, catálogo de exposição. MEC/FUNARTE/INFOTO, Espaço Latino-Americano. Paris, 1984.
4 Puzzle – termo inglês que significa “enigma”. Novamente, a questão da decifração – coerência interna da trajetória dos trabalhos de Vera.
5 “Quebra-cabeça”, série de trabalhos de 1983-1984.
6 “Sem título”, série de fotografias.
7 “Atenção, processo seletivo do perceber” – série de desenhos a lápis, de 1980.
8 CHAVES, Vera. Texto no catálogo de exposição do Museu de Arte Contemporânea do Paraná, setembro-outubro de 1981.
9 Idem, ibidem.
10 “Fragmentos de multidão”, série de desenhos a pastel, 1982; “Quebra-cabeça”, série de 76 desenhos e uma foto, 1983-1984; faz parte da série “Atenção, processo seletivo do perceber”.
11 BRODY, Ana Hauser. “Arte como experiência interdisciplinar”. Catálogo de exposição. Espaço Arte Brasileira Contemporânea, INAP-FUNARTE-MEC, julho-agosto de 1984.
12 Em alguns casos, Vera emoldurou cada pedaço antes de compô-los em conjunto.
13 “Epidermic Scapes”, série de fotografias ampliadas, de detalhes do corpo, de 1977-1982.
14 CHAVES, Vera. Catálogo de exposição. CAYC, Buenos Aires, 1979.
15 “Muros” ou “Homenagem a Leonardo”. Instalação, CAYC, Buenos Aires, 1979.
16 VINCI, Leonardo da. Tratado de la Pintura. Buenos Aires, Ed. Losada, 1954. IN: VIGIANO, Cris, op. Cit., p.20.
17 “Simetrias” (da série TESTARTE). Fotografias, 1976. O trecho a que nos referimos está presente no catálogo de exposição no CAYC.