Leia o texto de Eduardo Veras, crítico e historiador da arte, professor do Instituto de Artes da UFRGS e curador de Destino dos Objetos, nova exposição da Fundação Vera Chaves Barcellos, que inaugura no dia 22 de agosto, publicado na Revista Arte ConTexto.

Momento privilegiado este em que as coisas ainda não se fizeram. Escrevo no gerúndio e parafraseio Benjamin: estou organizando uma exposição. Sim, estou. O conceito foi definido; as obras, escolhidas; a distribuição das peças já delineada. Escrevo, porém, enquanto as obras seguem naquilo que o pensador alemão chama de “suave tédio da ordem” (Benjamin, 1987, p. 227), recolhidas à reserva técnica da Fundação Vera Chaves Barcellos, em Viamão, à espera da montagem no espaço e da apresentação ao público.

Este brevíssimo texto, mesmo correndo o risco da mitificação que costuma acompanhar as narrativas sobre origens, procura traçar algo da gênese dessa exposição que ainda nem aconteceu. Antes de tudo, houve o convite da direção da FVCB para a realização de uma curadoria em sua sede, na chamada Sala dos Pomares. A mostra deveria ser em torno ou pelo menos a partir do acervo da casa. Entendi que esse seria um bom pretexto para uma reflexão sobre a própria FVCB, instituída há pouco mais de 10 anos, e também sobre aquilo que representa o gérmen mesmo da Fundação: as coleções de arte formadas por Vera Chaves Barcellos e Patricio Farías ao longo dos anos, antes mesmo da formalização desse importante centro de divulgação de arte contemporânea.

Imaginei em seguida que as obras a serem escolhidas deveriam também elas, em alguma medida, evocar o tema ou o conceito do colecionismo. Como professor pesquisador junto ao Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, desenvolvo pesquisa sobre artistas viajantes, sugerindo aproximações e contrapontos entre a tradição (séculos XVI a XIX) e a produção mais recente.1Uma das questões caras a muitos desses artistas, seja no passado ou no presente, era precisamente a pulsão colecionista. Em seu estudo sobre a Expedição Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792), a historiadora Maria de Fátima Costa observa que, na maior parte das vezes, os riscadoresprocuravam isolar e recolher os objetos que lhes interessavam, fossem espécimes de flora e fauna, exemplares minerais ou artefatos indígenas. Sobretudo quando não obtinham muito sucesso na coleta, tratavam de desenhar (COSTA, 2001). A partir daí, a meu ver, a própria figura do artista foi se delineando como a do colecionador; as obras, como itens de coleção.

Um texto de Walter Benjamin e dois vídeos, que não fazem parte do acervo da FVCB, mas a que assisti quando começava a pensar na exposição, ajudaram a definir o norte curatorial. Em “Desempacotando minha biblioteca”, o autor discorre sobre o colecionismo e, em especial, sobre as motivações do colecionador, seu fascínio em “encerrar cada peça num círculo mágico”. Em uma projeção antes de tudo poética, Benjamin apresenta o personagem como um “intérprete do destino” no “mundo dos objetos”. O colecionador, segundo ele, monta uma “enciclopédia mágica”, cuja quintessência é o “destino dos objetos” (BENJAMIN, 1987, p.228). Daí, aliás, o título da exposição.

Um dos vídeos, Coisas que cabem em uma caixinha de fósforos (2014), de Amanda Teixeira, reproduz justamente o gesto do artista que seleciona e cataloga grupos de objetos similares no interior de uma pequena embalagem: ora pedras, ora cadeados, mínimos objetos da vida cotidiana. O outro vídeo, de autoria da mesma artista, Dança das cadeiras (2014), acompanha, com câmera fixa e enquadramento rigorosamente superior, a sucessão de movimentos em que as mãos da artista arrancam o forro do assento de uma cadeira. A remoção deixa à vista o tecido que estava por baixo, e ainda outro e outro abaixo daqueles, como quem traz à tona diferentes camadas de memória. O percurso se faz similar ao da própria escrita da História: coleção de lembranças e esquecimentos.

Definidas essas escolhas, Destino dos objetos passa a incorporar diferentes itens do acervo da FVCB que, por caminhos distintos, abordam ou reproduzem noções de coleção ou colecionismo. Alguns correspondem ao isolamento, ao recolhimento e à sacralização de uma peça específica, peça que abandona sua função original e que, embora deslocada do mundo, preserva as memórias ali entranhadas. Anota Benjamin: “Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de seus pertences” (BENJAMIN, 1987, p.228). O colecionador não abre mão de todos os detalhes que cabem no objeto.

Outros artistas colecionadores chamam a atenção menos pela importância que conferem a cada item do que pela direção que percorrem. O que norteia seu trabalho são as noções de acúmulo, ordenamento e classificação, a insistência algo obsessiva em torno de uma imagem ou um procedimento. Interessa, antes de tudo, aquilo que se repete, não necessariamente como objeto, mas como gesto mesmo, o gesto que risca o círculo mágico da metáfora benjaminiana.

Neste momento, estou, também eu, no gerúndio, adivinhando um destino para objetos e gestos. Como diria Benjamin, sim, estou.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter Rua de mão única – Obras escolhidas. Vol. 2. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COSTA, Maria de Fátima. “Alexandre Rodrigues Ferreira e a capitania do Mato Grosso: imagens do interior”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Vol. VIII. 2001.

Texto publicado em: http://www.artcontexto.com.br/textocurto_07_eduardo_veras.html